Entrevista concedida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, ao jornal "Argumentos e Factos", Moscovo, 4 de abril de 2023
Pergunta: O Presidente chinês, Xi Jinping, fez recentemente uma visita oficial à Rússia. Qual foi o coeficiente de rendimento das conversações entre a Rússia e a China?
Serguei Lavrov: A visita estatal do Presidente chinês, Xi Jinping, à Rússia entre os dias 20 e 22 de março deste ano, que foi a sua primeira viagem ao estrangeiro após a sua reeleição como Chefe de Estado e um marco importante na história contemporânea das relações russo-chinesas, uma prova de que as nossas relações bilaterais atingiram um nível sem precedentes e têm uma natureza especial. Os líderes russo e chinês conversaram nos mais diversos formatos, entre os quais um jantar a sós e um chá à lareira, durante um total de cerca de 10 horas. A importância de tais contactos pessoais para a promoção de todo o conjunto de laços bilaterais não pode ser sobrestimada. Como o Presidente Vladimir Putin assinalou, a troca de pontos de vista decorreu "num ambiente caloroso, amigável e construtivo". O Presidente chinês, por sua vez, descreveu as conversações com o Presidente russo como "francas, amigáveis e produtivas". Durante as conversações com a participação das delegações dos dois lados, foi feito o balanço do desenvolvimento multidisciplinar das relações russo-chinesas nos últimos tempos, foi feito um "inventário" das questões atuais da cooperação em diversos domínios. O líder chinês teve também um encontro produtivo com o Primeiro-Ministro russo, Mikhail Mishustin, no qual foram discutidas as principais opções da intensificação da nossa cooperação prática. Os principais resultados da cimeira foram registados em dois documentos importantes: a Declaração Conjunta sobre o Aprofundamento da Parceria Abrangente e das Relações de Cooperação Estratégica que Entram numa Nova Época e a Declaração Conjunta sobre o Plano de Desenvolvimento de Áreas-Chave da Cooperação Económica Russo-Chinesa até 2030.
Os Chefes de Estado constataram a importância de dar continuidade à sua coordenação estreita no cenário internacional. Os dois lados têm visões semelhantes das causas dos principais desafios no domínio da segurança internacional. Constatamos a relutância do Ocidente em travar o diálogo interestatal em pé de igualdade. Somos contra a utilização de sanções e outros instrumentos de concorrência desleal. Ao mesmo tempo, a nossa interação estratégica não é dirigida contra países terceiros, contribuindo para o desenvolvimento equilibrado de todo o sistema internacional.
A China reafirmou a sua posição equilibrada sobre o problema ucraniano. Saudamos a vontade de Pequim de desempenhar um papel construtivo na resolução política e diplomática do conflito. Registamos que as principais disposições do documento sobre a situação na Ucrânia publicado pelos nossos parceiros chineses está em consonância com a nossa posição, especialmente no que diz respeito à necessidade de garantir uma segurança igual e indivisível para todos os países da Europa e e do mundo em geral. Entretanto, o processo de paz está a ser dificultado por Kiev e pelos seus supervisores ocidentais, que estão a fazer os possíveis para prolongar as hostilidades.
A visita do líder chinês teve uma ampla ressonância internacional, dominando literalmente a agenda mediática global. Isto confirma que a parceria estratégica Rússia-China ultrapassou há muito que um contexto puramente bilateral. É evidente que as nossas posições comuns claramente articuladas sobre as questões-chave da atualidade foram ouvidas.
Pergunta: Na véspera da visita de Xi Jinping à Rússia, o Embaixador chinês em Moscovo, Zhang Hanhui, afirmou: "A China continuará a construir uma cooperação estratégica com a Rússia 'de costas para as costas'. O senhor está a sentir as "costas" do Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Qin Gang?
Serguei Lavrov: O Ministro Qin Gang, tal como os seus antecessores, Wang Yi, agora membro do Bureau Político do Comité Central do CPC, e antes dele Yang Jiechi, Li Zhaoxing, e muitos outros diplomatas chineses proeminentes são meus bons amigos e correligionários. Certamente, ajudamo-nos mutuamente e estamos prontos a defender, ombro a ombro, os interesses centrais vitais uns dos outros e a manter a coordenação estratégica dos nossos esforços no cenário internacional. Temos salientado repetidamente que a interação russo-chinesa desempenha um papel crucial na formação de uma ordem mundial mais justa, mais equilibrada e policêntrica baseada no direito internacional e no papel central das Nações Unidas.
Mantenho contactos eficazes com o Ministro dos Negócios Estrangeiros da China, Qin Gang, diplomata experiente e altamente profissional que já visitou o nosso país muitas vezes antes de ser nomeado para este alto cargo. A primeira reunião teve lugar a 2 de março em Nova Deli, à margem da reunião dos Ministros dos Negócios Estrangeiros do G20. Assinámos o Plano de Consulta entre os dois Ministérios para este ano. Como parte deste importante mecanismo, estamos a retomar a prática de acerto de agulhas entre os vice-ministros e departamentos dos nossos Ministérios dos Negócios Estrangeiros.
Durante a visita de Xi Jinping, tive contactos com Wang Yi e Qin Gang. Estão também previstas reuniões com o Ministro Qin Gang, à margem de outros eventos multilaterais. As relações entre a Rússia e a China continuam a desenvolver-se de forma progressiva. Temos pela frente um grande trabalho para resolver um grande número de questões práticas.
Pergunta: Não é segredo que existem peritos que duvidam da possibilidade de desenvolver relações russo-chinesas verdadeiramente iguais. Entre os argumentos citados está o de diferente nível de desenvolvimento económico dos nossos países. O que poderia responder a estes peritos?
Serguei Lavrov: A questão da alegada "dependência" e da "desigualdade" das relações russo-chinesas tem sido levantada durante muito tempo principalmente em países hostis. Este tema foi novamente levantado por alguns "especialistas" na sequência da recente visita do Presidente chinês, Xi Jinping, a Moscovo. Consideramos isto como tentativa de lançar uma sombra sobre os nossos sucessos e de semear a discórdia entre Moscovo e Pequim. Estes esquemas são fáceis de descobrir, enquanto as invectivas padronizadas recomendadas pelos seus manuais de instruções já se tornaram aborrecidas e não atingem ninguém.
No auge dos fornecimentos de recursos energéticos russos à Europa, nenhum dos analistas ocidentais, por alguma razão, assustou a Rússia com a sua dependência da UE. Pelo contrário, os EUA advertiram a Europa contra a dependência dos fornecimentos de hidrocarbonetos do nosso país, querendo substituí-los pelo seu próprio petróleo e gás de xisto. Agora que estamos a redirecionar as nossas exportações para a Ásia, eles decidiram subitamente mostrar preocupação com a nossa situação e advertir-nos "amigavelmente" contra a nossa dependência da China. Estamos-lhes agradecidos pela advertência, mas vamos pensar por nós mesmos, regendo-nos pelos nossos interesses nacionais e contando com o apoio dos nossos amigos chineses fiáveis, testados no tempo e pelos atos reais.
Os peritos internacionais sérios compreendem que, no atual mundo multipolar, existem ligações ramificadas entre países. A China é o principal parceiro comercial da Rússia por 13 anos consecutivos. Nos últimos dois anos, o intercâmbio comercial aumentou 33% anualmente, tendo atingido, em 2022, um novo valor recorde de 185 mil milhões de dólares. Fornecemos uns aos outros, numa base mutuamente benéfica, produtos que têm procura nos nossos mercados. É importante notar que mais de metade dos desembolsos mútuos são feitos em moedas nacionais, a nossa cooperação não se limita ao comércio, abrangendo um espectro muito vasto, desde a energia e indústria até à agricultura e às atividades espaciais. No plano económico e comercial, temos com a China uma relação de interdependência positiva, este resultado do nosso trabalho não pode deixar de nos agradar.
Pergunta: Após a declaração do Reino Unido de que pretende fornecer à Ucrânia munições com urânio empobrecido, o Ministro da Defesa da Rússia, Serguei Shoigu, avisou que "há cada vez menos passos para um confronto nuclear". O que pode a Rússia fazer no campo diplomático para que o número destes "passos" aumente?
Serguei Lavrov: A missão da diplomacia é identificar e elaborar formas pacíficas, políticas e diplomáticas de resolver contradições e conflitos entre países, inclusive aqueles com o poder nuclear. No entanto, aqui surge o problema que é melhor descrito pela frase agora bastante estafada de que "são precisos dois para dançar o tango".
A Rússia fez muitas propostas construtivas, pragmáticas e não politizadas para resolver os atuais problemas internacionais. Entre elas esteve a iniciativa do Presidente da Rússia, Vladimir Putin, avançada em dezembro de 2021, de dar à Rússia garantias de segurança juridicamente vinculativas no setor ocidental. No entanto, Washington e Bruxelas ou ignoraram as nossas propostas ou reagiram negativamente. Como resultado, a sua política provou a atual crise na Ucrânia. Hoje em dia, os EUA e os seus satélites da NATO fizeram uma aposta extremamente arriscada numa nova escalada do conflito. O Ocidente coletivo declara publicamente que o seu objetivo é infligir uma "derrota estratégica" à Rússia.
Nós, da nossa parte, permanecemos abertos a contactos, desde que sejam mantidos em pé de igualdade e levem necessariamente em conta os interesses russos: a fim de melhorar a situação na Europa e na região euroatlântica e de reduzir os riscos nucleares a longo prazo. O principal pré-requisito aqui é que o Ocidente abandone a sua política agressiva e hostil. No entanto, o Ocidente não está preparado para um diálogo construtivo connosco e está, durante as 24 horas por dia, à procura de novas formas de conter a Rússia. A periculosidade desta sua política é óbvia. Temos avisado os nossos colegas ocidentais sobre isto por todos os meios disponíveis.
Pergunta: O senhor já contou muitas vezes como os americanos estão a pressionar os países africanos, utilizando métodos muito primitivos. Quando os países africanos lhes perguntam: "O que irão receber aqueles que tomarão o lado do"?, Washington responde que eles não serão punidos. E o que é que a Rússia oferece a África?
Serguei Lavrov: De facto, os EUA e os seus vassalos estão a fazer os possíveis para conseguir o isolamento internacional da Rússia. Em particular, estão a tentar torpedear a segunda cimeira Rússia-África agendada para os finais de julho em São Petersburgo, para dissuadir os nossos amigos africanos de participar. Outra coisa é que há cada vez menos países desejosos de sacrificar os seus interesses fundamentais aos interesses de Washington e dos seus lacaios e de tirar "castanhas do fogo" para as antigas metrópoles coloniais. Por isso, as tentativas de dificultar a nossa cooperação com os Estados do Sul e do Leste Globais irão continuar, mas o seu sucesso está longe de estar garantido.
A nossa principal diferença em relação aos ocidentais é que nunca dizemos aos nossos parceiros estrangeiros como devem viver as suas vidas. Não temos uma agenda oculta. Não usamos padrões duplos. Temos construído a nossa cooperação com outros países com base no direito internacional, igualdade, respeito mútuo e consideração pelos interesses da contraparte. Parece que esta nossa posição construtiva é do agrado dos países africanos, é do agrado de todos os países normais.
E, claro, temos muito a oferecer aos nossos amigos africanos, inclusive em termos de garantir a sua segurança nacional e satisfazer as suas necessidades na esfera humanitária. Os países africanos estão interessados em que a Rússia participe na formação dos seus profissionais. Nesta área, as nossas posições são tradicionalmente fortes. O ensino superior soviético e russo tem sido muito procurado por várias gerações de africanos. Esta é apenas uma pequena parte da cooperação multifacetada e mutuamente benéfica entre a Rússia e os países africanos, que pretendemos desenvolver de todas as formas possíveis.
Pergunta: A Segunda Cimeira Rússia-África e o Fórum Económico e Humanitário a realizar em São Petersburgo no verão próximo serão obviamente bem sucedidos, se conseguirmos passar das palavras e promessas à implementação de projetos estratégicos concretos. Moscovo está a preparar alguma surpresa?
Serguei Lavrov: Consideramos a Cimeira de São Petersburgo como elemento sistémico de cooperação entre a Rússia e a África. O trabalho para preenchê-la de conteúdo concreto está a ser feito em estreita cooperação com os nossos amigos africanos. A transferência de tecnologia, o desenvolvimento industrial e o desenvolvimento de infraestruturas críticas no continente irão dominar a pauta da cimeira. Pretendemos discutir substancialmente a participação da Rússia em projetos de digitalização dos países africanos, de desenvolvimento do seu setor de energia, agricultura e exploração mineira e garantia da sua segurança alimentar e energética. Esta não é uma lista completa de tópicos que estarão no centro das atenções. Estou convencido de que a cimeira irá reforçar a parceria estratégica russo-africana, dar um vector de desenvolvimento a todo o conjunto de relações com o continente africano numa perspectiva de médio prazo, e dar um contributo substancial para a resolução eficaz dos problemas regionais e internacionais.
Pergunta: O senhor costumava visitar frequentemente os países da União Europeia. Agora, por razões conhecidas, o mapa das suas viagens mudou. Pensa que a UE perdeu a Rússia por muitos anos?
Serguei Lavrov: De facto, o mapa das minhas viagens ao estrangeiro mudou, refletindo agora as prioridades da Rússia no cenário internacional consagradas no Conceito renovado de política externa da Rússia. O senhor muito bem disse que a União Europeia "perdeu" a Rússia. Mas a culpa é da UE. Afinal, são os países membros da UE e os próprios líderes da União que declaram publicamente que é necessário infligir uma derrota estratégica à Rússia, segundo eles próprios dizem. Eles fornecem armas e munições ao criminoso regime de Kiev, enviando instrutores e mercenários para a Ucrânia. Por estas razões, consideramos a UE como associação inamistosa. Fizemos as conclusões necessárias. Em resposta a medidas hostis, agiremos de forma dura, se necessário, guiando-se pelos interesses nacionais da Rússia e pelo princípio da reciprocidade, universalmente aceite na prática diplomática.
Se, em algum momento, os europeus abandonarem a sua política antirrussa e optarem por um diálogo em pé de respeito mútuo com a Rússia, examinaremos as suas propostas e tomaremos decisões com base nos nossos interesses nacionais que foram formulados no novo Conceito de Política Externa da Federação da Rússia e aprovados pelo Presidente russo, Vladimir Putin.