Intervenção inicial e respostas a perguntas dos jornalistas do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação da Rússia, Serguei Lavrov, na conferência de imprensa sobre o desempenho da diplomacia russa em 2021, Moscovo, 14 de janeiro de 2022
Caros colegas,
Boa tarde! Felicito-vos a todos pela chegada do Ano Novo em todos os sistemas de calendário, menos aqueles adotados por alguns dos nossos colegas do Leste. As férias prolongar-se-ão por mais um mês: temos pela frente o Ano Novo chinês e o Ano Novo no calendário oriental.
Começámos a trabalhar imediatamente após voltarmos das férias. Até sacrificámos parte dos dias de folga. A situação atual no mundo é de tal modo complexa que não nos permite descansar nem relaxar. Não vou avaliá-la detalhadamente. Os senhores estão familiarizados com os discursos programáticos detalhados proferidos pelo Presidente da Rússia, Vladimir Putin, nas reuniões alargadas das Cúpulas Dirigentes dos nossos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Defesa e na sua grande conferência de imprensa, de 23 de dezembro de 2021.
É evidente para todos que a situação não está a melhorar. O potencial de conflito vem-se acumulando. Os nossos colegas ocidentais estão a contribuir decisivamente para esta evolução negativa, tendo optado por minar a arquitetura das relações internacionais baseadas na Carta das Nações Unidas e por substituir o direito internacional pelas suas "regras" que querem impor a todos para construir uma nova ordem mundial. Criam "formatos" de toda a espécie nas áreas de atividade internacional há muito incluídas na ordem de trabalhos dos organismos universais do sistema da ONU. Estamos a assistir à duplicação das funções. Estes formatos estreitos, os "encontros-entre-nós" são apresentados como coligações de "vanguardistas" que elaboram novas atitudes "necessárias" atualmente a todos os outros. Aqueles que não se juntam são declarados retrogradados empenhados em implantar o revisionismo na vida internacional. Embora o revisionismo seja aparentemente o que o Ocidente está a fazer agora. Está a tentar rever a Carta das Nações Unidas. A Rússia e os outros países que são os nossos aliados e os nossos parceiros estratégicos defendem a Carta das Nações Unidas, os seus princípios, objetivos e a sua estrutura, protegendo-a do revisionismo.
O "projeto" mais odioso do Ocidente, uma "cimeira pela democracia", teve lugar nos dias 9 e 10 de dezembro de 2021. Os preparativos, o próprio evento e os seus "resultados" proclamados em Washington são um bom exemplo da política seguida pelos nossos colegas americanos com vista à reideologização da vida internacional (coisa de que nos livrámos recentemente) e à criação de novas linhas divisórias.
A política dos EUA e da Aliança do Atlântico Norte visa manifestamente conter a China e a Federação da Rússia. Eles não deixam de tentar alargar a NATO e de arrastar a Ucrânia para a Aliança. Recentemente, a liderança da Aliança e dos EUA fizeram declarações curiosas de que os países escandinavos que não são membros da NATO também serão bem-vindos. As tentativas de "aliciar" novos membros para alargar esta Aliança, que perdeu a razão de ser após o fim da Guerra Fria e a extinção do Pacto, continuam.
Em dezembro de 2021, entregámos aos EUA e aos membros da NATO dois documentos, tornámo-los públicos: refiro-me aos projetos de tratado entre a Rússia e os EUA sobre garantias de segurança e de acordo sobre medidas de segurança entre a Rússia e os países da NATO. Ambos fazem parte de um único conjunto e visam impedir qualquer alargamento da NATO a leste e a instalação de sistemas de armas que nos ameacem perto das fronteiras da Rússia. A 10 de janeiro deste ano, os peritos russos e norte-americanos reuniram-se em Genebra, a 12 de janeiro, Bruxelas acolheu uma reunião com a participação dos países da NATO. A parte russa salientou e argumentou detalhadamente a necessidade de as partes se concentrarem em fazer com que um bloco deixe de se expandir em detrimento dos interesses de outros países do continente europeu. Penso que os senhores acompanharam de perto as informações detalhadas acerca destes eventos e as entrevistas concedidas pelos representantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros e do Ministério da Defesa da Rússia.
É de salientar que se trata de garantias juridicamente vinculativas, é isso de que precisamos. Os nossos parceiros ocidentais nunca cumpriram os seus compromissos políticos consagrados nos anos 90 (não falando sequer das suas promessas verbais). A julgar por tudo, também não o vão fazer agora. Este é um tema à parte. Explicámos-lhes detalhadamente que a sua posição era deficiente e que a interpretação unilateral dos compromissos políticos sobre a não expansão da NATO e da indivisibilidade da segurança era inaceitável. Estamos à espera de respostas escritas dos nossos colegas, redigidas "no papel", como o que fizemos, formulando as nossas propostas. Continuaremos a trabalhar para estarmos preparados para qualquer eventualidade.
Estamos convencidos de que, com boa vontade e disponibilidade para o compromisso, soluções mutuamente aceitáveis podem ser sempre encontradas. Gostaria de recordar que, no início de 2021, conseguimos prorrogar o Tratado de Limitação de Armas Estratégicas Ofensivas por cinco anos sem quaisquer condições, tal como era proposto pela Federação da Rússia. Elogiámos esta iniciativa da administração Biden como um dos primeiros passos após o seu empossamento. Na reunião, de 16 de junho de 2021, em Genebra, os Presidentes da Rússia e dos EUA, Vladimir Putin e Joe Biden, respetivamente, concordaram em ser necessário manter um diálogo sobre todas as questões da estabilidade estratégica e sobre as armas que a afetam. Foi adotada uma importante declaração que reafirmou o princípio de que uma guerra nuclear não pode ser vencida, pelo que nunca deve ser desencadeada. Apraz-me dizer que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas adotaram, ao mais alto nível, no passado dia 3 de janeiro, uma declaração conjunta sobre a inadmissibilidade da guerra nuclear e os compromissos dos países detentores de armas nucleares de fazerem os possíveis para a evitar. A medida contribuirá para a preparação da cimeira dos líderes dos cinco países possuidores de armas nucleares proposta pelo Presidente da Rússia, Vladimir Putin. Esperamos haver um acordo sobre as questões organizacionais e a ordem de trabalhos. Esperamos que o encontro cimeiro seja realizado em regime presencial assim que a situação epidemiológica o permita.
Estamos a trabalhar na vertente ocidental em outras áreas da política externa russa. Em 2021, desenvolveram-se a cooperação de integração no seio da UEE e o processo de integração do Estado-União da Rússia e da Bielorrússia, o que contribui para a iniciativa do Presidente da Rússia, Vladimir Putin, de criar uma Grande Parceria Eurasiática.
Neste contexto, desenvolvemos as nossas relações com os nossos parceiros no continente asiático. Celebrámos o 20º aniversário do Tratado de Boa Vizinhança, Amizade e Cooperação entre a Rússia e a China. Promovemos uma parceria estratégica particularmente privilegiada com a Índia e com a maioria dos nossos parceiros na Ásia-Pacífico, com os países de África e da América Latina. Na Ásia-Pacífico, dispensámos especial atenção às nossas relações com os países membros da ASEAN no contexto da criação de uma Grande Parceria Euro-asiática.
Aproveitámos ao máximo as possibilidades para um diálogo construtivo proporcionadas por associações como o G20, BRICS e OCX.
Estivemos envolvidos em prestar ajuda na resolução de conflitos (em Nagorno-Karabakh, Síria, Afeganistão, Líbia), na questão do programa nuclear iraniano, nos assuntos palestino-israelitas, na situação na Península da Coreia e outros "focos de tensão". Neste contexto, gostaria de assinalar a missão cumprida pelas forças de manutenção da paz da OTSC (estão a solucionar agora as restantes questões). A pedido do Presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev, a Força de Paz ajudou o país a fazer frente à ameaça terrorista que surgiu no território cazaque graças inclusive à influência externa.
Prestámos apoio diplomático aos esforços de combate à pandemia do coronavírus e às suas consequências. A vacina Sputnik V foi registada em 71 países. Contactando com os nossos parceiros estrangeiros, continuamos a explicar-lhes a evidente relevância prática da iniciativa apresentada pelo Presidente da Rússia, Vladimir Putin, na Cimeira do G20, de 30 a 31 de outubro de 2021, sobre o reconhecimento mútuo dos certificados nacionais de vacinas. Já temos acordos com alguns países a este respeito.
Em 2022, vamos continuar a trabalhar em todas estas áreas. Continuaremos a defender o papel central da ONU e a necessidade de respeito estrito pelo direito internacional na forma como está consagrado nos documentos universalmente aceites e adotados e a fazer frente às tentativas de "fracioná-lo" em artigos separados e interpretá-los no interesse de apenas um grupo de países.
Continuaremos a combater o terrorismo e o cibercrime. Há decisões importantes a este respeito adotadas ao longo do ano passado nas Nações Unidas e noutros formatos. Apoiaremos e contribuiremos para a consolidação do mundo russo como movimento multiétnico e multiconfessional. Em outubro de 2021, realizou-se o VII Congresso Mundial de Comunidades Russas. Novos planos conjuntos foram delineados.
As questões da liberdade de expressão e da igualdade de acesso à informação permanecerão sob o nosso controlo especial. A este respeito, continuaremos a exigir que os nossos colegas ocidentais não se furtem aos seus compromissos e os cumpram na íntegra.
Se estiverem interessados, vamos continuar o nosso contacto. Estamos à vossa disposição.
Pergunta: O senhor já se referiu ao resultado das conversações de Genebra e de Bruxelas sobre as propostas da Rússia relativas às garantias de segurança. Estamos a aguardar agora uma resposta escrita: dos Estados Unidos na próxima semana, e da NATO, no prazo de uma semana. Ao mesmo tempo, constatamos que os nossos parceiros são críticos e por vezes negativos em relação às nossas propostas que nos são importantes. Que medidas tomará a Rússia se os EUA e a NATO rejeitarem as nossas propostas?
Serguei Lavrov: Estamos à espera de uma resposta escrita. Temos razões para acreditar que os nossos parceiros compreendem a necessidade de o fazer rapidamente, dar uma resposta concreta, no "papel". Não vamos esperar infinitamente. Os planos de atolar este processo em debates sem fim existem. Para ser franco, todo o mundo compreende que a perspectiva de se chegar a um acordo depende dos EUA. Tudo o que nos for dito sobre a necessidade de consultar os aliados e de envolver todos os membros da OSCE, tudo isso não passa de desculpas de mau pagador e tentativas de protelar o processo.
Quando as relações Rússia-NATO estavam em vias de constituição e se estava a tomar a decisão sobre a criação do Conselho Rússia-NATO (foi no âmbito de todos estes processos que foram ajustados os acordos políticos entre Moscovo e a NATO sobre como nos iríamos comportar no que respeita à configuração de forças armas e de armas) ninguém pedia nenhumas consultas. Isso não ocorria a ninguém. Ninguém pedia consultas com a OSCE, nem com a União Europeia, que agora (pela voz de Josep Borrell) se apresenta "magoado" por ter sido colocada "fora de jogo". Este é um tópico à parte.
Queremos ver a sua resposta às nossas duas propostas fixada "no papel", ponto por ponto, especificando o que lhes serve e o que não lhes serve e porquê. Se quiserem acrescentar alguma coisa, por favor, que formulem as suas emendas.
O senhor mencionou aquilo que está na boca de todos nos meios de comunicação social neste momento: a resposta do Ocidente tem por base a afirmação peremptória de que Aliança do Atlântico Norte não pode abdicar do princípio de porta aberta. Todavia, a Rússia não está vinculada por quaisquer acordos no seio da NATO. Nós, os norte-americanos, os europeus, os membros da NATO e os países neutros estamos firmemente vinculados por acordos e compromissos políticos no seio da OSCE. Neste contexto, a organização fornece-nos um quadro normativo só porque, nos anos 1990, foi alcançado um acordo sobre a inadmissibilidade de minar a indivisibilidade da segurança e reforçar a própria segurança em detrimento da segurança de outros. Aqueles documentos (em particular a Carta de Segurança Europeia, assinada ao mais alto nível em Istambul em 1999) consagravam três componentes. Todos concordaram e assinaram.
O primeiro componente, do qual o Ocidente agora gosta de falar, é o direito de escolher livremente as formas como garantir a sua segurança, incluindo tratados de aliança. Diz também que cada Estado tem o direito de ser neutro. Não devemos esquecer isso. Depois vem um conjunto de acordos que faz parte integrante deste compromisso, ou seja, acordos de que cada Estado respeitará os direitos dos outros Estados e não reforçará a sua segurança em detrimento da segurança dos outros. Está especificamente estipulado que nenhum Estado, grupo de Estados ou organização pode ser investido da responsabilidade primária pela manutenção da paz e estabilidade na região euro-atlântica nem pode considerar qualquer parte desta região como sua área de influência.
Os nossos colegas dos EUA e da NATO, ao "usurpar" a primeira parte deste pacote indivisível (direito de todos a escolher alianças), estão a tentar anular o resto, sem o qual a primeira parte não funciona. Não estamos vinculados por esta norma (sobre o respeito pelo direito de escolher alianças) se esta for aplicada ou se eles tentarem aplicá-la em flagrante violação das outras partes deste pacote indivisível. Explicamos-lhes isso de forma cabal. Estamos à espera das suas respostas formuladas por escrito, após o que, se for claro que faz sentido reiniciar as negociações, esta será a questão principal.
Iremos insistir em que os nossos parceiros nos expliquem como encaram os seus compromissos, especialmente os assumidos ao mais alto nível. Se as nossas propostas forem rejeitadas, avaliaremos a situação daí decorrente e levá-la-emos ao conhecimento do Presidente da Rússia, Vladimir Putin. Durante a grande conferência de imprensa, ele disse que tomaríamos decisões que levassem em conta todos os fatores e, antes de mais nada, garantisse a nossa segurança de forma confiável. Não vou fazer suposições, como os meus colegas no Ocidente estão a fazer agora. Penso que é contraproducente. É-nos importante receber uma resposta concreta ou contrapropostas que digam respeito às questões expostas nos nossos documentos e que são fundamentais para evitar desdobramentos negativos na nossa região comum, a Europa. Julgaremos pela reação dos nossos colegas quão sérios eles são.
Em entrevista, a chefe da equipa negociadora dos EUA em Genebra, a Subsecretária de Estado dos EUA, Wendy Sherman, disse que não havia sido negociações, antes um exame de posições. Uma afirmação eloquente. Chegámos a estas conversações com posições formuladas "no papel" um mês antes da reunião de Genebra. Os norte-americanos que, nesse espaço de tempo, não se haviam dado o trabalho de estudar as nossas propostas para elaborar uma posição concreta, limitaram-se a perguntas e explicações verbais. Esta etapa já pertence ao passado.
Pergunta: A Rússia pondera expandir a sua presença política e militar-estratégica em algum país?
Serguei Lavrov: Temos amplos laços militares e técnico-militares com os nossos parceiros e aliados. Estamos presentes em diferentes regiões do mundo. Esta questão diz respeito às relações bilaterais. Iremos orientar-nos pelos interesses da estabilidade global quando começarmos a discutir individualmente com os nossos aliados novos passos a dar neste sentido.
Pergunta: O tema da "não adesão" da Ucrânia à NATO, a intensificação das atividades da NATO no leste da Europa está na ordem do dia há muitos anos. A Rússia levantou muitas vezes estas questões. No entanto, os funcionários russos qualificam estes problemas de urgentes que exigem uma solução imediata neste momento. Porque é que esta questão se impõe de forma dura precisamente nesta altura, entre novembro e dezembro de 2021? O que aconteceu?
Serguei Lavrov: Os problemas acumularam-se no período posterior aos anos 90 em que os nossos amigos ocidentais "jogaram fora" as suas promessas sobre a não expansão da NATO, sobre a não deslocação de infraestruturas militares da NATO para leste, sobre a não instalação de forças de combate significativas nos territórios nacionais dos novos membros da NATO. A NATO teve cinco ondas de alargamento e aproximou-se das nossas fronteiras. Se, em 1997, ano em que estávamos a "formalizar" as nossas relações com a NATO, apenas a Polónia se candidatava a aderir à Aliança, veja como a situação mudou agora. Mais do que isso, todos estes territórios estão a ser ativamente desenvolvidos militarmente. Se as nossas propostas visam diminuir a confrontação em matéria militar, diminuir a tensão global na Europa, o oposto está a acontecer no Ocidente. A NATO está a aumentar as suas forças terrestres e aéreas nos territórios adjacentes à Ucrânia. Os exercícios no Mar Negro aumentaram muitas vezes em número e em dimensão. Temos razões para pensar que as declarações retumbantes, que estão a ser feitas agora, de que, se a Rússia não "ceder" às exigências do Ocidente sobre como deve lidar com as suas tropas no seu território nacional (o que em si é absurdo), então nos próximos dois a três meses o Ocidente intensificará as atividades das suas forças de reação rápida e das forças de operações especiais da NATO em torno das nossas fronteiras.
Para responder à sua pergunta, vou dizer que muita coisa mudou. O que mudou foi a atual configuração das armas, do material de guerra e das forças armadas na Europa. Exigem-nos que coloquemos nos quartéis as nossas tropas instaladas no nosso território nacional na altura em que os norte-americanos, canadianos e britânicos estão permanentemente presentes nos países bálticos e noutros países do norte da Europa, dizendo-nos que se trata de tropas rotativas. Isso é inaceitável. Eles criam bases no Mar Negro. Os britânicos estão a instalar as suas bases na Ucrânia, uma base no Mar de Azov. Isto não nos pode servir categoricamente. Esta é uma posição inaceitável. O lapso de tempo escolhido reflete o período em que o Ocidente, e digamos sem rodeios, "passou das medidas", optando por agravar a situação em violação de todos os seus compromissos e bom senso. O Ocidente condena atos violentos contra civis, violações dos direitos humanos, etc... No entanto, quando golpes de Estado sangrentos são cometidos por pessoas que lhe juraram a fidelidade, o Ocidente simplesmente toma-as nos seus braços. Este foi o caso do golpe de Estado na Ucrânia, onde muitas pessoas morreram, inclusive às mãos de provocadores. O golpe foi aprovado pelos EUA (e usemos uma linguagem moderada) e depois foi acolhido como algo consumado pelos europeus. A história é bem conhecida. Ninguém vai investigar os crimes da Maidan, ninguém vai investigar o crime cometido em Odessa a 2 de maio de 2014, quando as pessoas foram queimadas vivas enquanto os criminosos se exibiam perante as câmaras. Esta é a espinha dorsal do novo governo. Nada muda. Poroshenko, Zelensky, os "setores de direita", unidades paramilitares tipo "Azov" que, ainda recentemente, eram vistos pelos EUA como extremistas. Agora a situação mudou. Algo semelhante havia acontecido na Geórgia em 2008, quando Saakashvili deu a ordem. Uma missão especial da UE realizou mais tarde uma investigação e informou oficialmente que tinha sido ele a começar a guerra. Mesmo assim, a Geórgia continua a ser amiga dos EUA. Aos amigos, na interpretação ocidental, é permitido tudo, como sabe.
A nossa paciência chegou ao fim. Somos muito pacientes. Sabem que somos lentos a arrear (os cavalos). Levámos um tempão para arrear. Agora temos de ir. Só estamos a esperar que o cocheiro da outra carruagem responda concretamente às nossas propostas.
Pergunta: A América deixou claro que não lhes vai dar garantias de segurança no que respeita à adesão da Ucrânia e de outros países à NATO. A Rússia admitiu que não havia conseguido discutir tudo o que lhe preocupava. A parte russa mencionou que daria uma resposta "militar" se isto não pudesse ser alcançado. O senhor poderia explicar mais detalhadamente o que esta "ação militar" envolveria? O que é que vão fazer? Será uma invasão? O que é que tem em vista dizendo "resposta militar"?
Serguei Lavrov: Não posso acrescentar nada ao que o Presidente Vladimir Putin disse após a sua conferência de imprensa, falando com jornalistas. Perguntaram-lhe diretamente qual poderia ser a resposta se as propostas da Rússia sobre garantias de segurança fossem rejeitadas. Ele disse que a resposta poderia ser diversa e dependeria das propostas que os militares russos fariam ao Presidente da Rússia. Por isso, não vale a pena fazer suposições. Só é típico dos nossos colegas ocidentais, norte-americanos, em primeiro lugar, agarrar um "cassetete de sanções" sem esperar pelo evoluir dos acontecimentos. Há já vários anos que o Departamento de Estados dos EUA tem um cargo de diretor do setor de sanções. Um departamento diplomático tem um setor inteiro especializado unicamente em punir aqueles que, de uma forma ou de outra, não concordam com os EUA e, por vezes, aqueles que não tenham feito nada. Só os castigam para que nem pensem nisso. Defendemos que tudo se resolva com base no respeito mútuo e num equilíbrio de interesses.
A posição da Rússia que foi apresentada pelos norte-americanos à NATO baseia-se precisamente num equilíbrio de interesses. Estes documentos visam garantir a segurança na Europa em geral e de cada país, incluindo a Federação da Rússia. A posição dos EUA e dos seus aliados é que querem garantir o seu domínio na Europa, criar cabeças de ponte militares em torno da Federação da Rússia e fatores irritantes para nós em torno das nossas fronteiras.
Mais uma vez, gostaria de chamar a vossa atenção para a Carta de Segurança Europeia adotada em Istambul em 1999. Tudo o que o Ocidente está a dizer e a fazer agora é uma violação grosseira dos compromissos por ele assumidos na altura. Outro exemplo da nossa tentativa (respondendo à pergunta da nossa colega anterior sobre a razão por que esperámos até agora), não esperámos até agora. Ainda em 2009, apresentámos para a apreciação dos nossos colegas ocidentais um projeto de Tratado de Segurança Europeia. A nossa proposta foi rudemente rejeitada. Disseram-nos que esta nossa proposta jamais seria discutida. Citamos textos de documentos, incluindo a Carta de Segurança Europeia, outros documentos referentes à necessidade de respeitar a indivisibilidade da segurança. Dissemos-lhes que queríamos traduzir os compromissos políticos que todos nós havíamos assumido numa forma juridicamente vinculativa. A resposta foi muito ilustrativa: garantias de segurança legalmente vinculativas só podiam ser dadas aos países membros da Aliança do Atlântico Norte. Esta filosofia mina tudo o que foi feito na OSCE desde o fim da Guerra Fria, incluindo o princípio que citei de que nenhuma aliança na região euro-atlântica tem o direito de impor a sua vontade aos outros. O senhor representa um veículo de comunicação de um Estado membro da NATO. A sua Aliança tem feito isso e aparentemente está a gostar. Não vemos aqui nenhum prazer para nós próprios, nem para os outros. Mas nós sabemos como garantir a nossa segurança em qualquer caso. Garanto-lhe que não vamos esperar infinitamente por mudanças, por promessas. Sabemos que o Ocidente espera haver uma situação que permitirá aos norte-americanos exonerar-se da principal responsabilidade pela solução destas questões nas negociações connosco. Primeiro, tentará "dissolver" tudo isto no Conselho Rússia-NATO, mobilizando para o efeito (vou dizer de forma mais delicada) os seus "camaradas de luta".
É, em princípio, impossível negociar na OSCE. Se esta organização estivesse pronta para negociar, teria de se tornar uma organização, mas esta não tem sequer uma Carta. Para que a OSCE adquira uma personalidade jurídica internacional, temos vindo a propor há 15 anos o início de negociações sobre a elaboração de uma Carta. Dizem-nos (em primeiro lugar, os norte-americanos) que a maravilha da OSCE está nesta "flexibilidade". Todavia, as questões da segurança firme nunca foram nem serão abordadas numa organização "flexível". Vemos os seus planos: fazer com que este tema se torne objeto de discussões abstratas. Vamos esperar firmemente, como dissemos aos norte-americanos, pela sua reação que deve ser "séria".
Pergunta: A Rússia respeita a soberania da Finlândia e da Suécia e o nosso direito de decidir por nós próprios sobre a nossa política de segurança e sobre a nossa adesão à NATO?
Serguei Lavrov: A Rússia respeita plenamente a soberania tanto da Finlândia como da Suécia. Acreditamos que a política de neutralidade destes países é uma das contribuições mais importantes para a arquitetura europeia comum e para a estabilidade no continente europeu.
Quem não respeita a soberania da Finlândia e da Suécia são aqueles que as querem provocar a aderir à NATO, por bem ou por mal. A agitação sobre esta questão começou há muito tempo. Agora que fizemos as nossas propostas de consolidar o "status quo ante" de 1997, ano em que nos haviam sido feitas muitas promessas, posteriormente quebradas pelo Ocidente, este último, pela voz de Jens Stoltenberg, começou a sensibilizar a opinião pública da Finlândia e da Suécia, exortando Estocolmo e Helsínquia a iniciar o processo de adesão à NATO, dizendo que este será rápido, indolor e assim por diante. É claro que cabe aos povos finlandês e sueco decidir. Discutimos sempre estes tópicos com os nossos vizinhos quando negociamos questões internacionais. Vemos que os líderes da Finlândia e da Suécia compreendem todos os aspectos desta questão. Temos todos os motivos para acreditar que a contribuição dos Estados neutros para a segurança europeia não irá diminuir.
Pergunta: O jornal New York Times informou, na sua edição de 10 de janeiro, que o responsável pela política externa da UE, Josep Borrell, enviou uma carta aos Ministros dos Negócios Estrangeiros dos países comunitários a dizer que precisam de fazer as suas próprias propostas em matéria de segurança e pronunciou-se a favor de um diálogo direto à parte consigo pessoalmente.
O senhor recebeu alguma dessas mensagens de Josep Borrell? A Rússia tem disposição para negociar questões da segurança com a UE separadamente dos EUA e da NATO? Poderia comentar a declaração feita por Josep Borrell nos últimos dois dias sobre o resultado das conversações sobre a segurança entre a Rússia, os EUA e a NATO? Não acha que a UE é mais favorável a um acordo de segurança do que os EUA e a NATO?
Serguei Lavrov: Relativamente aos mais recentes comentários de Josep Borrell sobre o tema das garantias de segurança no contexto das conversações que tivemos com os norte-americanos e da reunião do Conselho Rússia-NATO. Sim, sentimos que a União Europeia, de alguma forma, se sente melindrada. Di-lo em voz alta, apelando a que a sua contribuição seja tida em conta para que nenhuns acordos sejam alcançados nas suas costas.
Não sei, e não porque não o queiramos. Lamentamos que a UE tenha destruído, há mais de sete anos, todos os mecanismos onde os aspetos práticos da segurança foram discutidos. Voltámo-nos para os EUA e para a NATO. Quanto à NATO, temos o Conselho Rússia-NATO, pelo menos "no papel; ninguém destruiu a Ata Fundadora de 1997. Quanto à UE, foram os nossos colegas europeus que "taparam com cimento" todos os canais de comunicação. Por isso, deve dirigir esta pergunta ao Sr. Josep Borrell e aos países membros da União Europeia. Falando sobre a possibilidade de um diálogo separado com a UE, à parte dos EUA e da Aliança do Atlântico Norte, a UE deve perguntar aos EUA e à NATO se estes lhe permitirão agir de forma autónoma. Estamos interessados numa União Europeia independente. Acompanhamos de perto as tendências que ali se vem desenvolvendo. Não são unívocas. Vemos como a União Europeia receia que os seus interesses possam ser ignorados. Reconhecem-no abertamente após os acontecimentos no Afeganistão, após a epopeia dos submarinos australianos e após a criação da chamada AUKUS.
Temos detetado sinais crescentes por parte de alguns membros da UE no sentido de obter uma autonomia estratégica em matéria de segurança. Por outro lado, na UE há um lobby de linha dura que se opõe a todas e quaisquer tentativas de "separação" da NATO em questões da segurança e insiste que a Aliança seja fundamental para a segurança, incluindo para a segurança da União Europeia. Estas questões devem ser abordadas entre as duas estruturas. Na realidade, não nos interessa quem irá negociar se o processo for liderado pelos EUA. É deles que depende a política de segurança na Europa e noutras regiões do mundo, onde a NATO procura afirmar o seu papel, ao arrepio do objetivo original da Aliança. Os EUA conseguiram retomar o seu papel dominante no continente europeu através da NATO, conduzindo ativamente uma política de harmonização de quaisquer atividades relacionadas com o sector militar entre a NATO e a União Europeia. Existem acordos especiais de mobilidade militar, segundo os quais os países comunitários que não fazem parte da NATO têm de disponibilizar o seu território nacional e as infraestruturas de transporte às forças da NATO. Este é um processo sério. A Suécia, Finlândia e Áustria participam periódica e até mesmo regularmente em exercícios militares da NATO, inclusive aqueles com roteiros longe de serem inofensivos.
Falei com Josep Borrell à margem do Conselho Ministerial da OSCE, de 2 de dezembro de 2021, em Estocolmo. Reafirmámos que não iriamos fugir um ao outro. Recordei-lhe que "a bola está do lado da UE". Não "pusemos o ponto final" nas nossas relações. Havíamos contactado com Josep Borrel no ano passado e estamos prontos a continuar os nossos contactos. Tudo depende se lhe será permitido retomar o diálogo com a Federação da Rússia e de quão construtivas serão as questões que possam ser por eles levantadas.
Pergunta: Em discurso na videoconferência extraordinária dos Chefes de Estado da OTSC, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse que o mecanismo da OTSC entrou realmente em ação. O precedente no Cazaquistão significa que é agora maior a probabilidade de a OTSC utilizar as suas forças de manutenção da paz em caso de ameaças semelhantes noutros países membros? O que quis o Presidente russo dizer quando disse que o procedimento de tomada de decisão para o uso de forças conjuntas deveria ser melhorado? Como serão consolidadas as forças para combater as células terroristas adormecidas?
Serguei Lavrov: É importante que o Presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev, se tenha dirigido aos seus aliados em plena conformidade com o Tratado de Segurança Coletiva e a Carta da OTSC. A situação demonstrou que os esforços feitos nos últimos anos para criar um potencial de manutenção de paz têm sido eficazes e necessários. Como se costuma dizer: se se quer paz, prepare-se para a guerra. Graças a Deus, as coisas não chegaram a uma guerra. O potencial das forças de manutenção da paz provou que eram capazes de desempenhar as suas funções. O Ocidente ficou espantado com a rapidez com que as unidades enviadas pelos países membros da OTSC chegaram ao Cazaquistão aliado, a pedido do seu Presidente. Não duvido de que todo o mundo avaliou devidamente esta operação. Espero que não tenhamos mais de repeti-la, mas temos de "manter a pólvora seca". Deus nos livre que algo semelhante aconteça de novo. Fazemos os possíveis para o evitar, inclusive através das respectivas estruturas da OTSC. Temos de estar prontos porque as tentativas externas de desestabilizar a situação na Ásia Central e noutros países da OTSC chegam e sobram. Estas tentativas tornaram-se muito mais insistentes, arriscadas e perigosas depois de os norte-norte-americanos terem fugido do Afeganistão juntamente com a NATO, deixando o país no estado em que se encontra agora e perante a necessidade de reconstruir o seu sistema estatal.
As ações que mencionei incluem a luta contra as células terroristas adormecidas. Este combate deve ser travado não tanto pelas forças armadas como pelos serviços secretos. A OTSC tem tais estruturas, elas funcionam sob os auspícios dos conselhos de segurança nacionais. Sem dúvida, todas estas questões serão tratadas com uma maior seriedade e este trabalho será ainda mais indispensável.
Pergunta: Eu sou da empresa de televisão e rádio interestatal MIR, cujo escritório foi vandalizado em Almaty há nove dias. Os rebeldes não foram dissuadidos pelo facto de a Mir ter sido criada por iniciativa de Nursultan Nazarbaev e os atos constitutivos foram assinados pelo então Ministro dos Negócios Estrangeiros do Cazaquistão e atual Presidente do país, Kassym-Jomart Tokayev. Todo o equipamento foi destruído, até as baterias de aquecimento central foram levadas. Não obstante, os nossos colegas continuam a trabalhar e a transmitir em direto. Como diz o ditado: saímos mais fortes da derrota. Qual foi o sentido de saquear a sucursal cazaque de uma empresa de rádio e televisão interestatal? O senhor está a aguardar por nova ronda de sanções do Ocidente após o uso das forças da OTSC? Porque é que a OSCE se mantinha calada quando os extremistas destruíram tudo à sua volta, incluindo os escritórios dos meios de comunicação social, e só começou a comentar a situação depois de a ordem ter sido reposta? Seria melhor se não o fizesse.
Serguei Lavrov: Já comentámos esta situação. Fizemos declarações oficiais junto da OSCE, antes de mais nada junto do Representante para a Liberdade dos Meios de Comunicação Social. Uma conduta realmente vergonhosa para uma organização que se posiciona como "farol". O Ocidente diz que a OSCE é um "padrão-ouro", tendo, contudo, demonstrado outra vez que este padrão e "duplo" e não "ouro". O que foi feito é inaceitável. Como disse com razão, quando os jornalistas estavam a ser espancados ou em risco de morte, eles permaneciam calados. Quando a OTSC ajudou o Cazaquistão a acalmar e a normalizar a situação, quando os motineiros e saqueadores, autores de incêndios e outros crimes violentos começaram a ser detidos, eles puseram-se a exortar à "convivência" e a evitar a violência.
Neste contexto, o Secretariado da OSCE não foi mais longe do que o Secretariado da NATO. Quando a Ucrânia havia enfrentado os motins na praça Maidan, nos finais de 2013, o então Secretário-Geral da NATO, Anders Fogh Rasmussen, pediu publicamente ao então Presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovytch, para não usar as forças armadas. Assim que o golpe de Estado ocorreu, Anders Fogh Rasmussen mudou a sua retórica. Começou a exortar os golpistas colocados no poder de forma inconstitucional e violenta a usarem a força proporcionalmente. Ou seja, àquele a que chamavam "Presidente pró-russo" (embora este termo não seja correto) e que não ia "de braço dado" com o Ocidente não era permitido usar força e tal não era o caso dos golpistas que se declararam fiéis ao Ocidente.
A OSCE deve livrar-se da imagem que ganhou nos últimos anos como instrumento de promoção dos interesses ocidentais. A composição do secretariado da OSCE, como já dissemos muitas vezes a todas as presidências desta organização, a todos os seus secretários-gerais, é simplesmente discriminatória contra a Rússia e outros países da OTSC. Iremos combatê-lo. A OSCE deve ser transformada num fórum de diálogo igual, baseado no consenso e equilíbrio de interesses. Embora tudo isto esteja consagrado nos atos constitutivos da organização, na prática, o Ocidente procura privatizar os secretariados, a própria OSCE e todas as suas instituições. É o que eles devem fazer e não tentar "afundar" as nossas iniciativas sobre garantias de segurança nesta organização atualmente amorfa.
Não posso dizer nada sobre uma nova ronda de sanções após o uso de forças da OTSC. Não estamos a trabalhar em modo de espera. Trabalhamos com coisas concretas. No entanto, os nossos colegas ocidentais são capazes de tudo. Agora Washington está a ameaçar aplicar sanções contra nós. O Congresso norte-norte-americano preparou algumas, das quais algumas são do interesse da Casa Branca, outras não. Prestem atenção a um traço marcante da mentalidade destas pessoas: insistem na elaboração de sanções contra a Rússia para o caso de esta decidir "atacar" a Ucrânia. Elas não estão sozinhas nestas coisas. Há quem exorte a penalizar a Rússia com sanções se esta não retirar, já amanhã ou, o mais tardar, depois de amanhã, as suas tropas estacionadas no seu território nacional para longe da fronteira ucraniana sem esperar por ataques. Pode-se esperar qualquer coisa deles. Posso garantir-vos que estamos prontos para quaisquer desdobramentos. Quanto à área económica, se tínhamos algumas ilusões, deixámos de as ter nos últimos sete anos. Este tópico foi recentemente abordado no Fórum Yegor Gaidar. Até os nossos reputados economistas liberais se aperceberam de que temos de contar com as nossas próprias forças. Todos os mecanismos de relações económicas dependentes de estruturas controladas pelo Ocidente acarretam riscos. Já começámos a livrar-nos coerentemente destes riscos, sobretudo nos sectores de alta tecnologia.
Pergunta: Os resultados dos inquéritos à opinião pública na Ucrânia sobre a possibilidade da sua adesão à NATO causam-me a impressão de que, quanto maior for a pressão da Rússia, mais pessoas na Ucrânia dizem que querem que a Ucrânia adira à NATO. O senhor vê esta correlação?
Serguei Lavrov: Esta é uma continuação daquilo de que falámos. A Alemanha pensa que a Ucrânia deve ser apoiada em tudo e cumprir tudo o que a Ucrânia quiser. Não quer saber o que a Rússia quer? Será a Rússia menos importante para a Europa do que a Ucrânia? Novamente, vem a lógica de "ou/ou": ou faço as vontades à Ucrânia ou não sei o que fazer. A nossa lógica é fazer com que todos se sintam seguros e ninguém se sinta em desvantagem, ou seja, criar uma situação semelhante à patenteada após a reunificação da Alemanha em que nos prometeram que a infraestrutura militar da NATO não avançaria uma só polegada para o leste do Oder. Como sabem, estas promessas foram feitas. Nós também o queríamos. Todavia, acontece que a Ucrânia quer aderir à NATO e nós queremos que a NATO não avance mais. A Ucrânia apenas a quer, enquanto nós recebemos as promessas dos presidentes e personalidades reputadas.
Esperamos que a Alemanha se lembre da posição que tínhamos quando a Alemanha quis reunificar-se. Ao responder à pergunta sobre a Crimeia durante a Conferência Internacional de Segurança de Munique de 2015, eu disse aos meus parceiros de discussão que eles deviam lembrar como o nosso país havia apoiado a reunificação alemã e os alemães deviam compreender que os russos que viviam na Crimeia (a maioria da população da Crimeia) também tinham o direito de se reunificar com a sua Pátria, especialmente quando foram colocados perante a ameaça de um ataque de extremistas a gritarem "Fora da Crimeia". Então um dos deputados do Bundestag riu-se em voz alta na sala, tentando mostrar assim que essas eram duas questões incomparáveis. Não me parece que sejam incomparáveis. Espero que a Alemanha não se tenha esquecido da posição assumida pelo nosso país na altura em que os seus atuais aliados ocidentais duvidavam muito de que a Alemanha devesse reunificar-se. Mas a vida continua.
Por falar da Crimeia e do governo ucraniano que vocês pretendem admitir na NATO, não esqueça que, já nos primeiros dias após o golpe de Estado em Kiev os golpistas "puseram no lixo" a assinatura da Alemanha, França e Polónia colocada nos acordos entre Viktor Yanukovytch e a oposição e, ao contrário de todas as declarações e garantias, não quiseram sequer ouvir a UE sobre o assunto, e a UE acabou por aceitá-lo. Logo a seguir, os golpistas declararam que os russos da Crimeia jamais iriam falar ucraniano e pensar à ucraniana e nunca iriam glorificar os "heróis" da Segunda Guerra Mundial, ou seja, os cúmplices nazis Stepan Bandera e Roman Shukhevych. Foi então que o povo da Crimeia se levantou e repeliu um ataque armado contra o Soviete Supremo da Crimeia e declarou um referendo. Quando discutimos o tema de Donbass no formato Normandia e quando explicamos que é Kiev que tem de cumprir os acordos de Minsk (tal como aí está escrito), os nossos amigos alemães diziam-nos, até há pouco tempo: vamos deixá-los de lado por enquanto e vamos apenas começar a cumprir estes acordos. Como é que podemos implementá-los sem dirigir as exigências àquele que deve cumpri-los? Não deixamos de dizer que todos os problemas atuais da Ucrânia, tanto nas suas relações com a Rússia como nas suas relações com os seus próprios cidadãos, começaram com um golpe de Estado inconstitucional. Inicialmente, os nossos colegas ocidentais, incluindo os alemães, diziam-nos que tudo havia começado após a "anexação" da Crimeia. Quando lhes explicamos a gnoseologia deste conflito, eles não sabem o que dizer. Disseram recentemente que somos nós quem pensa que foi um golpe de Estado. Eles acham que foi um "processo democrático". Que vergonha! É nestas circunstâncias que temos de manter negociações sérias.
A Ucrânia, que vocês pretendem admitir na NATO, é agora representada pelo Presidente Vladimir Zelensky. Em tempos, Arseniy Yatsenyuk, quando era Primeiro-Ministro da Ucrânia, qualificou a população de Donbass que se havia levantado contra os nazis como seres não humanos. Recentemente, o Presidente Vladimir Zelensky chamou-lhes de "indivíduos", dizendo que se eles, "indivíduos", sendo cidadãos da Ucrânia, se consideram a si próprios russos e querem falar russo e cultivar a cultura russa, devem "ir plantar batatas" na Rússia. Talvez precise de "se livrar" das pessoas que se opõem categoricamente às tentativas de arrastar a Ucrânia para a NATO, compreendendo os riscos e ameaças que isso implica para a própria Ucrânia. Há muito sobre o que falar. A escolha, na situação atual, não é a quem dar apoio. Devemos todos unir-nos e acordar a sério as medidas a tomar para cumprir a promessa feita pelos nossos colegas ocidentais sobre a indivisibilidade da segurança e o seu compromisso de não reforçar a segurança de ninguém à custa da segurança dos outros.
Pergunta: O que queria realmente Moscovo quando iniciou o diálogo sobre as garantias de segurança? A Rússia não poderia ter deixado de compreender qual seria a resposta do Ocidente. O senhor mesmo mencionou isto nas suas respostas anteriores. Qual foi o seu sentido de fazê-lo agora? Há quem diga na Ucrânia que Moscovo pediu deliberadamente uma coisa grande para obter algo às escondidas. Se não este não for o caso, que argumentos tem a Rússia para persuadir o Ocidente coletivo a mudar de opinião? Poderia ser Cuba ou outra coisa qualquer?
Serguei Lavrov: Não tentámos jogar nenhum jogo nem seguir a teoria que alguém, como o senhor acaba de dizer, avançou na Ucrânia no sentido de "pedir mais para ter menos". Um jogo de uma só jogada utilizado tanto na vida quotidiana como na política.
No nosso caso tudo é muito mais sério. Rejeitamos categoricamente a hipótese de ter a Aliança do Atlântico Norte bem perto das nossas fronteiras, tendo em conta a política conduzida infelizmente pela liderança ucraniana (anterior e atual). Além disso, é uma verdadeira linha vermelha, eles sabem disso. Mesmo que a Ucrânia permaneça fora da NATO, pode ter acordos bilaterais com os norte-americanos, os britânicos, outros países ocidentais que aí estão a criar instalações militares e bases no Mar de Azov, também consideramos isso inaceitável. A instalação de armas de ataque no território dos nossos vizinhos, neste caso na Ucrânia, que constituiriam uma ameaça para a Federação da Rússia, é outra linha vermelha. É aí que a União Europeia está agora também a entrar correndo. Estávamos a falar sobre a União Europeia e a Ucrânia. Estão a propagandear os seus planos de enviar uma missão de treino militar para a Ucrânia, ou seja, também querem contribuir para o treino de, de facto, unidades anti-russas. Cada vez mais tropas estão a ser concentradas na linha de contacto, incluindo, que eu saiba, as unidades mais preparadas para o combate, os chamados batalhões voluntários, consideradas outrora pelo Ocidente como extremistas. A Ucrânia movimenta tropas pelo seu território, concentrando na linha de contacto um número de efetivos invulgarmente grande. O Ocidente não está preocupado com isso. O que o preocupa é o que a Rússia está a fazer no seu território nacional, embora a Rússia nunca, em nenhum momento, tenha ameaçado publicamente nem em privado o povo ucraniano. Já o Sr. Vladimir Zelensky e os seus seguidores mais próximos fazem-no abertamente. Já citei um exemplo quando Vladimir Zelensky havia exigido que os russos saíssem da Ucrânia. Esta é uma ameaça direta. E o que dizer se ele decidir mesmo utilizar as unidades das forças armadas ucranianas ali concentradas para expulsar os russos de lá? Afinal, um "plano B" está a ser discutido em Kiev. Até Dmytro Kuleba consultou os croatas sobre a sua Operação Tempestade que resultou na expulsão de 200 mil sérvios para fora do seu país de origem. Sugiro aos nossos colegas ocidentais que, quando quiserem ver quem e para onde move tropas no seu território nacional, que analisem quais os objetivos que os radicais ucranianos, liderados pelo seu atual Presidente, proclamam, de facto, em relação aos russos e aos russófonos.
Pergunta: As minhas perguntas estão indiretamente relacionadas com a Ucrânia. A Grécia tenta apoiar sem fanatismo as decisões da NATO, desejando ao mesmo tempo reatar e desenvolver as suas relações tradicionais com a Rússia. Aparentemente, isto não é fácil para países pequenos como a Grécia. Por outro lado, o Kremlin e a imprensa russa, têm referido a participação da nova base norte-americana em Alexandrópolis, no Norte da Grécia, na transferência de material de guerra para a Ucrânia. Quão crítico é isto para a Rússia? Este tema foi discutido com o lado grego? Há já três anos que a Ortodoxia mundial sofre o seu primeiro cisma geopolítico de sempre. A situação está a piorar. O cisma está a aumentar. Talvez a diplomacia possa de alguma forma ajudar as igrejas a não destruir ainda mais a tradição e a história comuns e a encontrar compromissos?
Serguei Lavrov: O senhor disse que a Grécia apoia sem fanatismo a NATO. Temos relações de longa data e raízes históricas com os nossos colegas gregos, com o povo grego, com a Grécia como um país. Lembramo-nos de Ioannis Kapodistrias, o primeiro governador da Grécia moderna depois de ser diplomata na Federação da Rússia. Recentemente tivemos boas conversas com Nikos Dendias. Discutimos tudo: as nossas relações bilaterais, perspetivas de desenvolvimento das nossas relações económicas, comerciais, culturais e humanitárias e na área de investimento. As nossas relações são estreitas em todas as áreas, incluindo na esfera da segurança. Abordámos o tema dos novos passos dados nas relações entre os EUA e a Grécia para elevar o estatuto do porto de Alexandropolis para fins navais dos EUA. Lemos sobre como os norte-norte-americanos irão utilizar este porto.
Os acordos de Minsk estabelecem uma proibição de instalar militares estrangeiros, homens armados estrangeiros no território ucraniano. Não têm uma disposição que proíba o fornecimento de armas à Ucrânia. Todavia, os militares estrangeiros estão persentes na Ucrânia, não se trata de milhares de homens (como alguns por vezes dizem erradamente), mas de centenas de norte-americanos, britânicos e outros. Os fornecimentos de armas não são formalmente proibidos. Voltando ao que as atuais autoridades ucranianas estão a fazer, estamos bem cientes de que tudo o que o Ocidente faz para encher o pais de armas cria nas atuais autoridades ucranianas a tentação de mudar para métodos violentos de resolução de problemas no Leste da Ucrânia. Não o aceitamos por razões óbvias. Por falar em instrutores. Quando levantamos esta questão, o Ocidente diz-nos sempre: estes são apenas instrutores, não estão envolvidos em operações de combate. Lembro-me muito bem das imagens da guerra na Geórgia em agosto de 2008 exibidas pela televisão que mostravam os instrutores com o uniforme de oficiais do exército norte-americano (brancos e afro-americanos) a ensinarem como carregar armas antitanque e outras armas. Não quero que isto se repita na Ucrânia, porque, na realidade, isso seria cruzar todas as "linhas vermelhas" e provocaria um confronto direto entre os ucranianos de origem russa e os militares da NATO. Compreendo que a Grécia faz parte da NATO e da União Europeia. Por outro lado, vemos que a Grécia não quer enveredar pelo caminho de endurecimento das sanções contra a Rússia. A Grécia não está satisfeita com o que se passa agora entre o Ocidente e a Federação da Rússia. Confiamos nos nossos amigos gregos e acreditamos que são sábios e serão capazes de fazer escolhas que estejam de acordo com as suas convicções.
No que diz respeito à Ortodoxia, este é um problema gravíssimo. O senhor pergunta se a diplomacia poderia ajudar. A diplomacia não deve, em princípio, interferir nos assuntos da Igreja. O Estado não deve interferir nos assuntos da Igreja. Mas há sempre situações em que a vida é mais complicada. A atual crise da Ortodoxia foi provocada com a participação direta dos Estados Unidos da América. Criaram um mecanismo especial, o cargo de enviado especial para a liberdade religiosa que não se ocupava das questões da liberdade religiosa, mas financiou e pressionou o Patriarca Bartolomeu de Constantinopla a seguir uma política de "cisma", inclusive na Ucrânia, e a estimular a criação na Ucrânia de uma Igreja Ortodoxa cismática, não canónica, o que causou grandes divergências no mundo ortodoxo. Infelizmente, as igrejas gregas (helénica, cipriota e outras) estão sob enorme pressão e, pelo que estou a entender, sob pressão do governo grego. Discutimos este assunto em privado, mas há factos disponíveis para consulta. Se concordarmos com os governos, diplomatas dos países onde se encontram as igrejas ortodoxas canónicas em não as impedir de viver de acordo com as suas leis e cânones, penso que esta será a melhor contribuição da diplomacia e de outras estruturas governamentais para a liberdade religiosa.
Pergunta: Recentemente houve combates na fronteira entre a Arménia e o Azerbaijão. O Azerbaijão usou artilharia, drones... Isto tem alguma ligação com a ajuda prestada pela Arménia e a Rússia ao Cazaquistão, dada a reação muito nervosa de Baku e de Ancara à ajuda da OTSC às autoridades cazaques?
Serguei Lavrov: Não vi uma reação "nervosa" de Baku ou de Ancara. Quanto a Ancara, um dos conselheiros do Presidente Recep Tayyip Erdogan, Ihsan Sener, fez uma declaração estranha em que criticou o Cazaquistão por ter convidado a OTSC. Pedimos aos nossos colegas turcos que nos explicassem o que isto significava. Os funcionários governamentais da Turquia e do Azerbaijão não fizeram nenhuns comentários negativos.
Defendemos a necessidade de delimitar, o mais brevemente possível, a fronteira entre a Arménia e o Azerbaijão. Isto não tem nada a ver com a região de Nagorno-Karabakh e questões da pacificação. Esta é uma questão puramente bilateral. Temos vindo a propor há quase um ano começar a trabalhar e criar uma comissão de delimitação e demarcação. Oferecemo-nos como consultores, dado que o Estado-Maior russo e outras estruturas russas têm mapas que mostram as diversas fases da formação da URSS, as mudanças nas suas unidades administrativas e nas fronteiras entre as repúblicas que a compunham.
Ainda ontem conversei com o meu colega arménio sobre este tema. Há propostas das partes. Para criar uma comissão, precisamos de chegar a acordo sobre os termos. Estes termos estão agora a ser discutidos, existem discrepâncias. A nossa posição é simples: é necessário resolver todas as questões ainda pendentes no âmbito da comissão oficialmente estabelecida.
Pergunta: O lado azeri sublinhou repetidamente a importância da delimitação e demarcação da fronteira. Em Sochi, foi acordado que seria criada uma comissão bilateral para delimitar a fronteira entre o Azerbaijão e a Arménia, devendo a Rússia ajudar as partes neste processo. Por enquanto, não há nenhumas ações da Armênia neste sentido. O senhor poderia comentar o assunto?
Serguei Lavrov: Já comentei este assunto. Em Sochi, chegou-se a um acordo de princípio. Nos contactos com a imprensa foi expressa a esperança de que a comissão em causa fosse constituída até ao final de 2021. Mas a vida prática é mais complicada. Os progressos alcançados neste sentido não são suficientes. Conversei ontem com os nossos colegas arménios. Eles têm novas propostas. Vamos entregá-las a Baku. Vamos ver como fazer com que que a comissão comece a funcionar o mais rapidamente possível. Sublinho uma vez mais que as divergências existentes dizem respeito às medidas a tomar para pô-la em ação. Será difícil. Durante as discussões chegámos à conclusão de que é possível criar esta comissão e incluir na sua ordem de trabalhos as questões prioritárias.
Pergunta: Como é do seu conhecimento, em 2014, o Presidente chinês, Xi Jinping, visitou os Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi. Numa recente reunião on-line com o Presidente Xi Jinping, o Presidente Vladimir Putin disse que, por sua vez, iria assistir à cerimónia de abertura dos próximos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim e ter a sua primeira reunião cara a cara com o seu velho amigo em quase dois anos. Pode dizer-nos, por favor, o que o lado russo espera desta visita?
Serguei Lavrov: De facto, estamos a preparar uma cimeira oficial Rússia-China. O Presidente Vladimir Putin visitará Pequim a 4 de fevereiro de 2022, dia da abertura dos Jogos Olímpicos, a convite do Presidente Xi Jinping. Nesse mesmo dia, serão realizadas conversações ao mais alto nível. Como sempre ocorre nas reuniões dos nossos líderes, será abordado todo o conjunto das relações bilaterais. A Rússia e a China têm uma agenda bilateral cheia e uma arquitetura única de relações bilaterais. Não temos agendas semelhantes com nenhum outro país, refiro-me às cimeiras anuais, reuniões de Chefes de Governo e às reuniões das cinco comissões a nível de Vice-Primeiros-Ministros que preparam os encontros dos Chefes de Governo. Este mecanismo revelou ser muito eficaz. As decisões tomadas são ponderadas, executáveis e favoráveis à intensificação da nossa cooperação. No ano passado, o intercâmbio comercial atingiu um patamar recorde, apresentado valores muito elevados.
A agenda da nossa cooperação inclui também temas da política externa devido ao agravamento da situação no mundo, do que hoje falaremos detalhadamente. A Rússia e a China, juntamente com os outros países correligionários, defendem unanimemente as normas do direito internacional, a igualdade, a proteção da soberania, a integridade territorial dos Estados, a resolução de todas as crises por meios políticos, e a não ingerência nos assuntos internos. Promovemos estes princípios aquando da consideração prática de situações concretas no Conselho de Segurança e noutros órgãos da ONU, combatendo as tentativas de substituir o direito internacional por "regras" inventadas pelo Ocidente com vista a usá-las como base para a ordem mundial. Nós e os chineses somos chamados "revisionistas", embora, na realidade, tudo esteja exatamente ao contrário disso. É o Ocidente que está a tentar rever o que está consagrado na Carta das Nações Unidas e noutras normas universais do direito internacional. Juntamente com os nossos amigos chineses e um grande grupo de outros países – latino-americanos, africanos, asiáticos – criámos, em Nova Iorque, na ONU, o Grupo de Amigos em Defesa da Carta da ONU que já realizou duas reuniões. Estamos agora a discutir a possibilidade de realizar uma reunião ministerial. Este é um formato necessário no meio dos ataques à Carta das Nações Unidas.
No plano internacional, a Rússia e a China têm uma visão comum das atitudes para com situações de crise persistentes como a questão do programa nuclear do Irão e a necessidade de retomar o Plano de Ação Conjunto Global, abandonado pela administração Trump, com vista à sua solução. Outra questão é o Afeganistão. Cooperamos estreitamente no seio da OCX, onde as questões afegãs e da Ásia Central ocupam agora um lugar de destaque. Cooperamos também no contexto do desenvolvimento da interação transeurasiática. O Presidente Vladimir Putin avançou a iniciativa de Grande Parceria Eurasiática que se correlaciona com as atividades da União Económica Eurasiática, que por sua vez, assinou e está a implementar um acordo de cooperação económica e comercial com a China. Neste contexto, os processos de integração no espaço da antiga União Soviética estão em harmonia com os passos práticos no âmbito do conceito chinês "Uma Faixa, Uma Rota". Trabalhamos juntos com a ASEAN para preservar o seu papel central em todos os elementos da arquitetura internacional na Ásia-Pacífico. Vemos os riscos acarretados pelo "conceito de estratégias Indo-Pacífico" promovido pelos norte-americanos e outros países ocidentais e destinado a criar linhas divisórias, a minar o papel central da ASEAN e a causar uma confrontação, inclusive com o uso de componentes militares, nesta região na altura em que a região necessita de negociações e discussões inclusivas para levar em conta as preocupações de todos e para elaborar soluções consensuais.
Esta é uma pequena parte das questões presentes na agenda da parceria abrangente e da interação estratégica Rússia-China. Estou convencido de que discutiremos todas estas questões durante os preparativos para a visita e durante a visita do Presidente Vladimir Putin a Pequim. Concordámos com o meu colega e amigo, o Ministro dos Negócios Estrangeiros da China, Wang Yi, em realizar uma reunião, na véspera das conversações dos líderes, para discutir detalhadamente a agenda internacional.
Pergunta: Os esforços da Turquia e da Rússia continuam a preservar a estabilidade no Sul do Cáucaso. Começou a funcionar uma plataforma de cooperação "três mais três". Todavia, a Geórgia ainda não aderiu. A Rússia fará alguma coisa para que a Geórgia adira ao formato "três mais três"? Hoje os representantes da Turquia e da Arménia reúnem-se em Moscovo para falar sobre as suas relações bilaterais. Como o senhor avalia os seus esforços?
Serguei Lavrov: Apoiamos certamente e participamos de forma empenhada nestes esforços. Ajudam a normalizar a situação no Sul do Cáucaso e a criar condições para que os problemas políticos pendentes sejam resolvidos de uma forma muito mais ativa e frutuosa através do desenvolvimento da cooperação económica e outros tipos de cooperação entre os três países do Cáucaso Meridional e os seus três grandes vizinhos, a Rússia, a Turquia e o Irão.
Apoiámos ativamente a ideia de formato "três mais três" quando foi mencionado pela primeira vez pelo Presidente Ilkham Aliyev e depois pelo Presidente Recep Erdogan. Vimos imediatamente um bom potencial de unificação nesta iniciativa. Desde os primeiros dias de discussão e durante a preparação da reunião em Moscovo, defendíamos que os nossos vizinhos georgianos também ficassem envolvidos neste processo, acreditando que, quanto mais possibilidades de comunicação houvesse, melhor seria para a resolução dos problemas restantes. Agora estamos a contactar com os nossos colegas georgianos no âmbito das discussões de Genebra sobre a Transcaucásia, onde as consequências da agressão georgiana de agosto de 2008 estão a ser discutidas, e no âmbito do canal bilateral informal estabelecido há muito entre Moscovo e Tbilissi. Os processos iniciados no formato "três mais três" são muito importantes, porque se discutem as perspetivas de desenvolvimento de toda a região.
Após as hostilidades do ano passado, os líderes da Arménia e do Azerbaijão assinaram, com a assistência do Presidente da Rússia, acordos para pôr fim às hostilidades, desenvolver as relações comerciais e económicas e desbloquear todas as rotas na região. Isto abre possibilidades de interesse para a Turquia, a Rússia, o Irão e a Geórgia. Parece-me que é do seu interesse aderir a este formato sem condições prévias. Podemos chegar a acordo de discutir no formato "três mais três" apenas tópicos de interesse para todos os participantes. Uma vez que não temos relações diplomáticas com a Geórgia (embora exista aí uma Secção de Interesses, as relações diplomáticas foram rompidas pelo lado georgiano), temos menos possibilidades de lhes explicar os benefícios desta forma de interação. Pedimos aos nossos amigos turcos e azeris (a Arménia também pode ajudar) para explicarem aos nossos vizinhos georgianos os benefícios que a adesão a este formato proporciona para eles e para todos nós. Não os vinculará a nada no que diz respeito às suas posições políticas.
A Turquia e a Arménia nomearam os seus representantes especiais. A Rússia ajudou-as a chegar a acordo. Muito nos apraz saber que a primeira reunião tem lugar em Moscovo. O nosso papel é o de ajudar a estabelecer um diálogo direto. Espero que tenhamos êxito.
Pergunta: No ano passado o senhor foi à China e à República da Coreia, mas, infelizmente, não visitou o Japão. A Rússia está a começar a esquecer o Japão? Como o senhor avalia as atuais relações russo-japonesa? Haverá uma reunião este ano? O Primeiro-Ministro Fumio Kishida teve várias reuniões consigo enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros. Diz-se que beberam saquê e vodka. Como espera interagir com o governo de Fumio Kishida? Quais novas prioridades a vossa política para o Japão tem? Que lugar ocupa o Japão na política externa da Rússia?
Serguei Lavrov: Tínhamos realmente planeado uma visita para o final de 2021. Devido às mudanças ocorridas anteriormente no Japão, foi acordado (de comum acordo) adiar a visita para dar tempo ao novo governo japonês para definir a sua política externa e a sua política para a Federação da Rússia.
Temos uma atitude muito boa para com o Japão e para com os japoneses. Eles são os nossos vizinhos. Temos uma história conjunta que é complicada. Nas últimas décadas, conseguimos criar uma atmosfera que nos permite abordar no espírito de camaradagem todas as questões ainda pendentes. Preferíamos que as questões pendentes e o trabalho para a sua solução não nos impedissem de avançarmos nas áreas onde os nossos interesses já coincidem objetivamente e onde a Rússia e o Japão poderiam conjugar os seus esforços para reforçar as suas vantagens competitivas nos mercados globais. Existem algumas barreiras para promover esta lógica. No Japão há um grupo de políticos e empresários que acredita que é necessário, primeiro, resolver a "questão territorial" e que, logo a seguir, o maná de investimentos japoneses cairá do céu sobre a Federação da Rússia. Acreditamos, porém, que não é do interesse da Rússia nem do Japão condicionar desta maneira a evolução das nossas relações à resolução do problema do tratado de paz. A questão do tratado de paz coube-nos por herança. O Presidente Putin disse isso muitas vezes aos seus colegas japoneses. Ele reiterou que estamos interessados em resolvê-la, principalmente com base nos acordos alcançados em dezembro de 2016 com o Primeiro-Ministro Shinzo Abe. Concordaram em intensificar este trabalho com base na Declaração de 1956 que afirma que, primeiro, temos de assinar um tratado de paz e depois considerar o resto. Entregámos aos nossos amigos japoneses o projeto de artigos de um tratado de paz. Estamos convencidos de que este tratado de paz, já que será assinado no seculo XXI e não em 1945, não pode conter uma só frase: a guerra terminou. Este tratado deve mostrar a plenitude dos laços que temos hoje e abrir perspetivas para o nosso desenvolvimento.
Queremos fazer com que não haja nenhuns mal-entendidos entre a Rússia e o Japão e que não haja obstáculos artificiais à nossa cooperação em matéria de investimento. Sabemos que o Japão está a ser pressionado a ser menos "entusiasta" a fazer investimentos na Rússia e juntar-se às sanções contra o nosso país. E o Japão junta-se a muitas das sanções. O Japão é também alvo de pressão nas questões da segurança militar. Estamos preocupados ao verificar que o Japão é há muito aliado dos EUA. O tratado de 1960 dá aos norte-americanos um grande espaço de manobra e uma grande liberdade de ação no território japonês. Agora que os documentos doutrinários dos EUA quase nos declaram inimigo ou, pelo menos, adversário e uma grande ameaça, juntamente com a China, a aliança do Japão com um país como os EUA não propicia muito o desenvolvimento das nossas relações.
Para além dos nos laços comerciais e económicos, humanitários e culturais e as suas perspetivas, para além das questões da segurança militar na região. O nosso tratado tem um outro aspeto importante. Corria um boato de que Washington planeava instalar os mísseis de médio e curto alcance, proibidos pelo tratado do qual os EUA se retiraram, no território japonês, entre outras coisas. Neste contexto, é extremamente importante compreendermos a situação. Se for este o caso, isso representaria uma ameaça para a Federação da Rússia.
Um grande conjunto de assuntos diz respeito à problemática internacional. Verificamos que, na ONU e noutras organizações internacionais, o Japão tem posições idênticas às de Washington, dos países da NATO e de outros países ocidentais. Se quisermos ser parceiros próximos, precisamos de ver até onde podemos ir para ultrapassar as grandes contradições entre nós na agenda internacional.
Acredito que, quando estabelecermos uma verdadeira parceria de "nova qualidade" em todas estas áreas, ser-nos-á muito mais fácil resolver todos os problemas, incluindo os relacionados com o tratado de paz, do que agora, num ambiente carregado de confrontação. As personalidades oficias japonesas fazem démarches sempre que responsáveis governamentais e altos oficiais russos visitam as ilhas Curilas do Sul que fazem parte integrante da Federação da Rússia em resultado da Segunda Guerra Mundial, o que está consagrado na declaração soviético-japonesa de 1956. Este é outro aspeto que nos contém. O Japão recusa-se terminantemente a reconhecer o resultado da Segunda Guerra Mundial referente a esta questão. É uma agenda enorme, positiva e, ao mesmo tempo, problemática, que requer esforços adicionais. É por isso que pretendemos tornar o nosso diálogo mais substantivo, mais concreto, mais aberto e destinado a promover a parceria Rússia-Japão sem tornar as suas perspetivas reféns das vossas relações com o vosso aliado mais próximo.
A visita irá certamente acontecer. Estamos agora a ajustar os nossos planos. Penso que vamos escolher datas para a visita nos próximos meses.
Pergunta: O Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, diz que o que o Presidente Vladimir Putin fez nos últimos anos apenas acelerou o que o próprio Presidente da Rússia disse querer evitar. Quais motivos, factos e acontecimentos levaram o chefe da diplomacia dos EUA a tirar conclusões tão específicas? O que é que o lado russo teria a dizer sobre o assunto?
Serguei Lavrov: É uma figura de linguagem. Os anglo-saxões adoram fazer declarações bonitas e crípticas. Não compreendo bem do que se trata neste caso. Em todos os anos da sua presidência, especialmente nos últimos anos, o Presidente Vladimir Putin tem prestado muita atenção ao reforço da soberania da Rússia. Podemos ver como a soberania da Rússia e de muitos outros países empenhados em seguir uma política mais ou menos independente é atacada pelo Ocidente. Trata-se de ataques híbridos, como são agora chamados, realizados em todas as direções, de tentativas de contenção militar direta (já falámos das relações Rússia-NATO), de ataques de informação, da utilização de mecanismos de soft power para fins sujos, de organizações não governamentais financiadas diretamente pelos governos e muito mais. Estes conceitos podem "dar certo" em relação a alguns países, mas não funcionam em relação à Rússia. A nossa experiência dos anos 1990 dá motivo ao Ocidente fazer declarações do gênero. Naquela altura, o Ocidente decidiu: "Pronto, eles já atingiram os objetivos que nós, norte-americanos, e não eles, fixamos para eles e estamos a ajudá-los a dar vida a estes objetivos, participando inclusive fisicamente no governo russo e nas suas estruturas. Deve ter sido frustrante pensar que a Rússia estava "no bolso" do Ocidente e não era mais capaz de defender os seus interesses e depois ver que na realidade tudo aconteceu ao contrário.
Falei várias vezes com o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken. Ele é um homem experiente, conhecedor de matéria que sabe ouvir. Muito do que hoje se diz publicamente tem a ver com a tensão criada artificialmente, com o desejo de criar um ambiente difícil em torno da Federação da Rússia, um pano de fundo adicional às negociações que se iniciaram em Genebra e continuaram em Bruxelas e as quais, espero, poderemos retomar. Mas isso dependerá de uma resposta concreta dos EUA, formulada por escrito, às nossas propostas.
Pergunta: É evidente que as relações com o Ocidente estão no seu pior nos últimos anos, enquanto na vertente leste as coisas vão bem. Na próxima semana, o Presidente iraniano, Ebrahim Raisi, visitará Moscovo. Esta visita ocorre numa altura em que a situação nas negociações sobre o programa nuclear iraniano em Viena não está clara, nomeadamente devido às sanções dos EUA, à situação do Golfo e à situação geral no Médio Oriente. Onde está agora a iniciativa russa sobre a segurança no Golfo, porque não "emerge", por assim dizer? Como poderia contribuir para a resolução de questões regionais importantes? Por exemplo, no Iémen, que é o maior desastre humanitário da atualidade. Quando vemos a expansão da NATO para Leste, existem planos, por exemplo, de expandir a OTSC, admitindo na aliança, por exemplo, o Irão ou outros países que podem reforçar um contrapeso às políticas do Ocidente e do Norte?
Serguei Lavrov: Assumiria uma posição mais otimista sobre o programa nuclear do Irão. Existem aí progressos reais, a vontade do Irão e dos EUA de compreender as preocupações concretas e de ver como estas preocupações podem ser abordadas num pacote geral. Só pode ser uma solução de pacote, como, aliás, o próprio "acordo iraniano". O Plano de Ação Conjunto Global era uma solução de pacote. Os negociadores que estão agora em Viena são muito experientes. Estão a examinar os detalhes e têm bons progressos. Esperamos que se chegue a um acordo. Para tal, é importante que os nossos parceiros iranianos sejam tão realistas o mais possível e cooperem com a AIEA e que os participantes ocidentais não tentem criar uma tensão psicológica, lançando periodicamente no espaço mediático e público iniciativas que critiquem o Irão e lhe façam algumas exigências. Neste caso, a "diplomacia silenciosa" é necessária e está a funcionar. Graças a Deus conseguimos ultrapassar a situação em que o Ocidente condicionou o reinício do programa nuclear iraniano às restrições ao programa de mísseis do Irão (disposição que não estava presente no JCPOA) e ao seu "comportamento" na região. Éramos categoricamente contra. Teria sido injusto se esta atitude tivesse prevalecido. Tratava-se do JCPOA, que foi aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU na forma como foi assinado. Tratou-se de restaurar na íntegra este acordo, abandonado pela administração Trump, na forma como foi acordado, sem quaisquer isenções nem adendas. No final de contas, chegou-se a acordo de que a atitude seria exatamente esta.
Relativamente ao programa de mísseis e ao comportamento na região, a nossa posição é que todos os países da região, bem como os países extrarregionais, têm muitas reclamações uns contra os outros. O Irão tem reclamações contra os seus vizinhos árabes, os seus vizinhos árabes têm reclamações contra o Irão. O Ocidente, os EUA e os países europeus também têm algumas perguntas a fazer ao Irão para saber o que ele está a fazer. Esta região engloba países que têm um interesse para além das suas fronteiras, que têm uma influência real nos acontecimentos na Síria, Líbia, Djibuti, Iémen. O senhor citou um exemplo muito eloquente. Tentávamos persuadir a não irem além do objetivo de restaurar o JCPOA. Dizíamos que reconhecíamos e que o Irão também reconhecia que existiam outras questões que preocupavam mais os países da região e os seus colegas extrarregionais. Propusemos convocar conferências sobre a segurança no Golfo Pérsico para discutir todas estas preocupações. Na nossa opinião, isso deveria ser feito num âmbito mais amplo. Todas estas questões, sejam do Iémen ou do Iraque, estão interligadas. Propusemos convocar uma conferência que reunisse os iranianos e os árabes e em que cada uma das partes apresentasse as suas preocupações. Não é só o Irão que tem mísseis. Os árabes, também, estão a desenvolver a sua produção de mísseis. As preocupações sobre o Iémen, Síria, Iraque e muitos outros focos de tensão causam, de uma forma ou de outra, controvérsias entre outros países. Este é o nosso conceito. Perguntou porque é que ainda não "emergiu". Porque não estava submersa. Realizámos, no outono passado, outra conferência científica, com a participação de cientistas políticos e especialistas de potenciais países participantes. Agora está em curso o processo de conclusão dos trabalhos para a restauração do JCPOA. O coronavírus não está a "ajudar" muito. Esta conferência continua a ser uma das nossas prioridades. Compreendemos que esta iniciativa em si não pode ser ignorada. Os nossos colegas chineses têm propostas semelhantes para os países do Golfo. Os iranianos avançaram a iniciativa de Ormuz. No entanto, o nosso conceito é mais amplo, porque pressupõe ir além do grupo de países costeiros do Golfo Pérsico e atrair os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, países da Liga dos Estados Árabes e da União Europeia.
No que diz respeito ao alargamento da OTSC. Tudo está escrito na Carta da OTSC. Quem quiser aderir, deve fazer o respetivo pedido. Durante o último ano e meio, os Chefes de Estado assinaram um Protocolo que altera a Carta da OTSC, criando estatuto de parceiro e observador. Informámos disso os países interessados. Pelo menos, existe interesse em estabelecer contactos com a OTSC. Iremos informar-vos sobre como se desenvolve este processo.
Pergunta: O Presidente iraniano, Ebrahim Raisi, pretende visitar a Rússia. O que é que acha da importância desta visita para um maior reforço das relações entre os nossos dois países?
Serguei Lavrov: Esta visita é muito importante. É tempo de retomarmos os contactos ao mais alto nível. Os nossos contactos com a República Islâmica do Irão são estreitos e regulares e também foram prejudicados pelo novo coronavírus. Os nossos líderes conversaram ao telefone. Um contacto presencial é muito mais produtivo do que falar sem se verem um ao outro. Há necessidade de fazer um inventário de toda a nossa agenda após as mudanças na liderança do Irão para compreender em que áreas e como estamos a garantir a continuidade. No plano económico, temos uma agenda cheia. Todavia, quando há muitos projetos conjuntos, é necessário prestar uma maior atenção aos detalhes. O governo está a trabalhar. A comissão intergovernamental copresidida pelos Ministros da Energia deve dar a sua contribuição. Claro que temos perguntas a fazer ao Irão sobre a sua política internacional, sobre o JCPOA, sobre a situação geral no Golfo Pérsico (do que acabamos de falar detalhadamente), sobre o nosso trabalho conjunto na ONU e noutras organizações internacionais, incluindo a Organização para a Proibição de Armas Químicas e outras. Neste contexto, o Irão faz parte da nossa equipa comum que defende os princípios do direito internacional, acordos universais (e não os aprovados num grupo restrito de países). Teerão defende o papel central da ONU e faz parte do Grupo de Amigos em Defesa da Carta da ONU. Temos uma interação estreita em uma série de questões regionais, obviamente na questão da Síria. Somos participantes no formato Astana juntamente com os nossos vizinhos turcos. Penso que este é um bom exemplo de como nos podemos unir (assumindo posições que não coincidem a cem por cento) e criar pragmaticamente uma plataforma onde os nossos três países possam ajudar os sírios a iniciar um processo político, como fizeram em 2018. Foi a Troika Astana que ajudou o Congresso Sírio, em Sochi, a formular o documento que serviu de moldura para as negociações. Foi a Troika que estimulou os negociadores da ONU que (digamos educadamente) "estiveram adormecidos" nessa fase por cerca de um ano sem fazer nada. O "processo Astana" estimulou as negociações que estão a decorrer em Genebra, embora nem sempre sem problemas.
Pergunta: As novas correntes sociais, incluindo a "nova ética", tornaram-se ultimamente dominantes no Ocidente. Cientistas e homens de cultura reputados caem vítimas da "cultura do cancelamento" porque as suas ideias e opiniões não são alegadamente conformes com a "nova ética". Nos EUA, este processo sobrepôs-se à já dolorosa divisão entre os Democratas e os Republicanos. Como o senhor encara estas tendências? Foi Representante Permanente da Rússia nas Nações Unidas em Nova Iorque durante 10 anos. Reconhece os EUA após tanto tempo?
Serguei Lavrov: "Nova ética"? Quer dizer que havia uma ética "antiga"? Quando lá vivia, prevalecia a "ética antiga", fosse o que fosse que isso significasse. Não houve exacerbações sociais como estas. Presumo que Deus criou o homem. Nós, como representantes de diferentes correntes do cristianismo, temos os mesmos valores das outras religiões mundiais: islamismo, judaísmo, budismo, etc. Esta herança milenar dos nossos antepassados de diferentes credos religiosos reflete de forma concentrada a sabedoria humana acumulada. É perigoso que alguns tentem pô-lo em dúvida ou destruir. A UNESCO e outras agências humanitárias devem seguir estritamente os seus estatutos, escritos com base na ética clássica tradicional.
Pergunta: O que é que acha do futuro das relações entre a Rússia e a Índia? Qual é o resultado da visita do Presidente da Rússia, Vladimir Putin, à Índia? A cimeira do RIC (Rússia-Índia-China) terá lugar, apesar da crescente tensão na fronteira Índia-Chinar?
Serguei Lavrov: O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, visitou Nova Deli em dezembro de 2021. O coronavírus dificulta muito o desenvolvimento do diálogo direto entre os nossos dois países. Neste caso, todas as condições necessárias foram cumpridas. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o Primeiro-Ministro da Índia, Narendra Modi, tiveram conversações proveitosas. Valorizamos muito as nossas relações. Não é por acaso que se chamam parceria estratégica particularmente privilegiada. Iremos desenvolvê-la por todos os meios.
Existe uma Troika: Rússia-Índia-China (RIC), estrutura precursora do BRICS que está agora nas bocas de todo o mundo. Hoje em dia, poucos são os que falam do RIC, embora esta seja uma estrutura muito eficaz. Os Ministros dos Negócios Estrangeiros já se reuniram quase 20 vezes desde o início do RIC. Há reuniões setoriais de ministros, dos seus vices, de peritos em áreas de cooperação económica, comercial e humanitária. A Rússia, Índia e China participam no BRICS, OCX. Desde o dia 1 de janeiro deste ano, os três países são membros do Conselho de Segurança da ONU há dois anos. Vemos o interesse dos nossos amigos indianos e chineses em manter e desenvolver este formato.
A Índia e a China mantêm um diálogo direto sobre muitas questões, incluindo a segurança. Têm uma Declaração sobre Parceria Estratégica entre a Índia e a China. Se o RIC também puder ser útil no reforço do ambiente de confiança, iremos apoiá-lo. Para além do efeito político, os três países compõem uma única área geográfica. A Troika trata de planos económicos e de investimento a longo prazo.
Pergunta: O senhor já falou sobre o Médio Oriente, os problemas na Síria e no Iraque. No início de dezembro passado, o Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros e Enviado Especial da Presidência Russa para o Médio Oriente e África, Mikhail Bogdanov visitou o Iraque, o Curdistão iraquiano e Erbil. Falaram sobre a situação política no Iraque e sobre a solução na Síria. O que é que o senhor acha das perspetivas da solução da questão síria e do estatuto dos curdos? Em novembro passado, Ilham Ahmed, Presidente do Comité Executivo do Conselho Democrático da Síria, visitou Moscovo.
Realizaram-se eleições parlamentares no Iraque. Por enquanto, apenas a liderança do parlamento foi nomeada; o governo está em vias de formação. Como o senhor avalia o papel dos curdos neste processo e na estabilidade do Iraque e de toda a região em geral?
Serguei Lavrov: Esta questão é aguda, multifacetada e complexa. Nos períodos históricos mais recentes tem provado ser complexa. Estamos interessados em desenvolver relações estreitas com o Iraque. Temos uma longa história de amizade. Agora temos bons contactos económicos. As nossas empresas atuam no Iraque. Estamos gratos pelas condições favoráveis criadas para elas. Quanto mais estável for o Iraque, mais confiantes estaremos no desenvolvimento das nossas relações bilaterais. Queremos que os nossos amigos iraquianos vivam num ambiente de paz. Isto é bom para o intercâmbio entre as pessoas e para os nossos profundos laços empresariais, humanitários e técnico-militares.
Na Síria, a questão curda é um dos obstáculos a negociações substanciais. Há curdos no Comité Constitucional, mas não representam todas as estruturas curdas. Algumas ficaram "à margem" do processo constitucional e estão agora orientadas para os EUA, enquanto que outras estão orientadas para os seus vizinhos turcos. Quando o ex-Presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou a retirada das tropas norte-americanas do Iraque, as Forças Democráticas Sírias pediram-nos imediatamente que as ajudássemos a estabelecer um diálogo com Damasco. Assim que os EUA mudaram de ideias, elas perderam o interesse. A vida é assim, acho eu. Os políticos curdos devem alargar os seus horizontes e olhar para mais longe. Não há dúvida de que não serão os norte-americanos a decidir o destino da Síria. Eles, como o resto do mundo, continuam a reiterar o seu apego à integridade territorial da Síria, "encorajando", na realidade, as tendências separatistas na margem oriental do Eufrates.
Os nossos contactos, inclusive com a Sra. Ilham Ahmed e os seus colegas, visam explicar-lhes a necessidade de iniciar uma conversa séria com Damasco sobre as condições em que os curdos viverão na Síria. O governo sírio é contido em relação a esta questão. Eles não esqueceram que os curdos se opunham ao governo nas etapas anteriores. Mas é para isso que serve a diplomacia, para superar o passado e construir relações para o futuro. Para tanto, a experiência do Iraque, Erbil, da Região Autónoma Curda é necessária. Estive em Erbil e Bagdad há dois anos. Apoiei ativamente a tendência para estabelecer contactos. Os curdos iraquianos e sírios têm-nos. Os curdos iraquianos devem ser mais ativos a transmitir a sua experiência aos seus irmãos sírios.
Quanto às avaliações da situação no Iraque após as eleições, cabe ao povo daquele país decidi-lo. O tema que já abordámos hoje tem um aspeto especial: a segurança no Golfo Pérsico e em toda a região. Vemos como os norte-americanos estão agora a tentar transformar não só a Síria, mas também o Iraque numa arena de luta contra o Irão e os seus interesses.
Paralelos curiosos. No território iraquiano estão presentes tropas estrangeiras. Quando a OTSC enviou forças de manutenção da paz a pedido do Presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev, Washington exigiu que Nur-Sultan lhe explicasse o motivo por que o Cazaquistão havia convidado as forças desta organização e que a Rússia se retirasse assim que o Cazaquistão lhe dissesse "obrigado". O Cazaquistão afirmou: a Rússia e a OTSC estão de partida. Quando é que os norte-americanos vão deixar o Iraque? Não foram chamados. Mais do que isso, o parlamento iraquiano decidiu que era tempo de os norte-americanos regressarem a casa. Como diz o ditado, todos são iguais, exceto os mais iguais. É sobre a pergunta de como os nossos colegas ocidentais se comportam e que atitudes mostram.
Esperamos que as eleições realizadas e a estabilização política ajudem a pacificar a região e nenhum país extrarregional obrigue o Iraque e os seus vizinhos a escolher com quem vai cooperar. É sobre a questão da liberdade de escolha de alianças. Quando Washington diz que o Iraque não deve comprar armas à Rússia, não contactar com o Irão ou outro país é um atentado direto contra a liberdade de escolher não só alianças, mas também parceiros.
Pergunta: O ano passado foi marcado com novos passos da Rússia para a consolidação e cooperação com o mundo russo global: a Constituição do país confere um novo estatuto aos compatriotas russos, foi criada uma nova comissão especial da Duma de Estado (câmara baixa do parlamento russo), realizou-se a 7ª Edição do Congresso Mundial de Comunidades Russas. Como é que o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia trabalha para proteger os direitos e interesses dos russos residentes no estrangeiro nas atuais condições difíceis?
Serguei Lavrov: Este trabalho vem ganhando novas dimensões todos os anos. Na sequência das emendas à Constituição, esta tarefa tornou-se constitucional. O Ministro dos Negócios Estrangeiros é presidente da Comissão Governamental para as Comunidades Russas no Estrangeiro. A comissão funciona há mais de dez anos, estabelecendo contactos com o enorme mundo russo multiétnico e multiconfessional.
Na maioria dos países com comunidades russas foram criados comités nacionais e regionais. Existe um Conselho Mundial de Coordenação de Comunidades Russas no Estrangeiro (CMCCRE). Estamos em contacto constante com este organismo. Cerca de 1200 eventos de atividades juvenis, desportivas, patrióticas e de direitos humanos foram realizados em 2021.
Foi criado um Fundo de Apoio e Defesa dos Direitos dos Russos Residentes no Estrangeiro. O Ministério dos Negócios Estrangeiros russo é o seu fundador. Foram criados cerca de 50 centros de defensória jurídica em mais de 30 países. Os centros prestam serviços de advocacia aos necessitados. Defendemos os seus direitos como cidadãos dos países que escolheram para viver. Iremos ampliar estas atividades. Temos constantemente levantado questões sobre a situação dos nossos compatriotas na ONU, na OSCE e no Conselho da Europa, inclusive no que se refere à defesa dos seus direitos linguísticos e educacionais que são grosseiramente violados nos países bálticos e na Ucrânia. Assim estes países ignoram as convenções em que os seus governos participam.
Temos um Programa Nacional de Assistência à Mudança Voluntária de Compatriotas para a Rússia. É um elemento relativamente novo na prática do nosso sistema estatal. Nos primeiros tempos, houve dificuldades com a sua implementação, agora tudo está em ordem e a situação está a mudar. Nos nove primeiros meses de 2021, mais de 60.000 (um aumento de 33% em relação ao período anterior) mudaram-se para a Rússia para viver aqui permanentemente. Fazemos os possíveis para que as regiões da Rússia escolhidas para viver pelos nossos compatriotas os ajudem a adaptar-se, o mais plenamente possível, à vida no país.
A Comissão para a Cooperação Internacional e Apoio às Comunidades Russas no Estrangeiro do Partido "Rússia Unida" foi criada por sugestão do Presidente da Rússia, Vladimir Putin. Fui encarregado de chefiá-la. Realizámos a primeira reunião. Trabalharemos não só no âmbito da Comissão criada pelo partido no poder, a principal força política do país, mas também iremos atrair outras bancadas parlamentares, o que já foi acordado. Será útil, porque o destino do Mundo Russo, assim como a situação dos nossos compatriotas no estrangeiro e o tratamento que lhes é dado no estrangeiro é a preocupação de todo o nosso povo e do nosso Estado. Uma das tarefas imediatas é simplificar o procedimento de mudança para o trabalho na Rússia. Contamos com a compreensão de outros ministérios, elaboramos os respetivos acordos.
A 7ª Edição do Congresso Mundial das Comunidades Russas reuniu mais de 400 delegados de mais de 100 países e correu muito bem. Vimos quão importante era para os participantes contactar entre si e com os representantes do governo russo. Infelizmente, em alguns países, principalmente nos EUA, os nossos compatriotas e os cidadãos da Federação da Rússia que viajam para o estrangeiro tornam-se alvo de perseguição. Ações absolutamente inaceitáveis por parte do governo dos EUA contra o CMCCRE fizeram com que este último tivesse de suspender as suas atividades. Alguns dos dirigentes do Conselho tiveram de se mudar para a sua Pátria por terem sido ameaçados de sanções penais. Isto tornou-se norma nos EUA.
Nestas circunstâncias difíceis, vamos esperar poder preservar e reforçar a nossa cooperação. Gostaria de manifestar os meus profundos agradecimentos a todos os nossos compatriotas por terem participado no trabalho de preservação da memória dos nossos avós e pais, das suas façanhas e da Grande Guerra Patriótica. Apraz saber que o Dia 9 de Maio, Dia da Vitória, foi celebrado em mais de uma centena de países, onde se realizaram eventos comemorativos como o Regimento Imortal, a Vela da Memória e foram plantados Jardins da Memória. Atividades como estas consolidam a nossa ligação com a história da nossa grande Pátria, com a história do nosso povo. Quando os nossos compatriotas tiverem novas ideias de como melhorar o nosso trabalho nesta área, solicitamos a gentileza de no-las enviar.
Pergunta: Gostaria de agradecer a ajuda na retirada dos nossos compatriotas do Cazaquistão. Por detrás de cada pessoa há uma história, filhos, netos. Ou seja, o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo fez muito mais do que se pode ver. Agradeço de todo o coração as medidas tomadas! A minha pergunta é: acha que o apoio aos compatriotas atingiu o seu auge, ou podemos esperar outras surpresas agradáveis em relação aos nossos compatriotas residentes no estrangeiro?
Serguei Lavrov: Quanto às suas palavras amáveis sobre o repatriamento dos nossos compatriotas do Cazaquistão. Realizámos apenas trabalho organizacional. O Ministério da Defesa russo fez a maior parte do trabalho prático. Estivemos em estreita coordenação com eles, como em muitos outros casos em que esforços semelhantes foram necessários.
Quanto à sua segunda questão: a perfeição não tem limite, portanto, dê-nos dicas. Temos a nossa própria visão. Baseamos a nossa análise nas avaliações que recebemos dos comités das comunidades russas, das nossas embaixadas, dos centros culturais russos. Elogiaremos sempre a contribuição adicional daqueles para quem fazemos isso.
Pergunta: Ao falar dos parceiros ocidentais no final do ano passado, o senhor mencionou o Kamasutra. No início deste ano, está a falar sobre a sua "impotência". O que mudou durante as férias de Ano Novo?
Serguei Lavrov: Nada mudou na minha opinião. Falei da impotência numa referência à União Europeia. Começámos esta conferência de imprensa por falar da União Europeia e finalizá-la-emos falando sobre a mesma. Falei sobre o quanto a União Europeia é favorável à busca de acordos e o quanto é capaz de cumprir os acordos alcançados. Citei alguns exemplos. Recentemente, a Assembleia Geral da ONU atribuiu à UE um mandato para mediar os contactos entre Belgrado e Pristina. Em 2013, havia sido acordado um documento sobre a criação de uma Comunidade de Municípios Sérvios no Kosovo que deveria conceder aos sérvios no norte do Kosovo direitos de autonomia sérios em questões culturais, humanitárias, linguísticas, educacionais e nas suas relações com a Sérvia. Faz lembrar o conjunto de direitos consagrados para as Repúblicas de Donetsk e Lugansk no Pacote de Medidas de Minsk. Em ambos os casos, a UE participou na negociação dos documentos. No primeiro caso como a UE, no segundo caso a UE foi representada no formato Normandia pela Alemanha e França. Em ambos os casos, os documentos aprovados não são cumpridos por uma das partes, pelo governo de Pristina no caso do Kosovo e pelo regime de Kiev no caso dos acordos de Minsk.
Todas as nossas exortações de que a UE deve fazer com que aquilo em que investiu esforço, talento e diligência seja cumprido não receberam nenhuma reação. Quanto aos acordos de Minsk, eles dizem-nos que a Rússia deve cumprir aquilo que a então Alta Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Federica Mogherini, descreveu nos seus "cinco princípios": as relações UE-Rússia normalizar-se-ão quando a Rússia cumprir os acordos de Minsk. Também aqui podemos dizer figurativamente que se trata de "esquizofrenia política", porque os acordos de Minsk não são sobre a Rússia, são sobre Kiev, Donetsk e Lugansk. As personalidades de Kiev fazem regularmente a diferentes níveis declarações oficiais de que não irão falar com aquelas repúblicas. Quando dizemos isso aos alemães e aos franceses, os franceses dizem-nos: não há nada nos acordos de Minsk que obrigue o regime de Kiev a falar com aquelas pessoas.
Voltando aos media, quando três canais de televisão foram encerrados em Kiev, abordámos os nossos colegas franceses. Eles disseram-nos que eram a favor da liberdade de expressão, mas os canais de televisão foram encerrados em conformidade com a legislação ucraniana. Este exemplo é bastante ilustrativo. Queremos que a UE desempenhe um papel independente. Outro exemplo relativo à Ucrânia. Foi a UE que garantiu o acordo entre Viktor Yanukovytch e a oposição em fevereiro de 2014. Na manhã do dia seguinte, a oposição "pôs no lixo" esse acordo. Bruxelas manteve-se calado. Agora há quem comece a chamar a este golpe de Estado "processo democrático".
Queremos ter relações normais com a União Europeia, não fomos nós quem as destruiu. Que a UE decida o quão pronta está para as reatar. Nós não vamos demorar se as coisas forem feitas em pé de igualdade e com base na procura de um equilíbrio de interesses, como temos sempre dito.
Pergunta: Gostaria de voltar ao tema dos resultados das conversações bilaterais entre a Rússia e o Ocidente sobre as garantias de segurança. Como o senhor já disse, a Rússia está à espera de contrapropostas dos seus colegas ocidentais, de uma resposta redigida "no papel". Se a resposta ocidental incluísse, por exemplo, a proposta de redução mútua de armas e de tropas e não dissesse nada sobre as garantias de não expansão da NATO, a Rússia estaria disposta a considerá-la? O que é que a Rússia faria exatamente neste caso? O Vice-Ministro Aleksandr Grushko referiu medidas técnico-militares, o que é que ele quer dizer exatamente com isso? O que são e quando serão tomadas?
Serguei Lavrov: As medidas técnico-militares são aquelas que pressupõem a instalação de material de guerra. Quando tomamos decisões sobre um determinado passo que envolve material de guerra, sabemos sempre o que queremos dizer e aquilo para que nos estamos a preparar. Os exercícios são realizados regularmente no nosso território nacional. Tivemos exercícios militares no oeste da Federação da Rússia, agora foi anunciada uma inspeção surpresa das nossas tropas na nossa fronteira oriental. Estes são os nossos assuntos, as nossas decisões. Quando material de guerra e força militar se concentram perto das fronteiras russas, quando os norte-americanos enviam dezenas de milhares dos seus militares, os britânicos, centenas de militares e milhares de unidades de material de guerra, devemos saber o que esta força vai fazer nos países bálticos, na Polónia, noutros países que podem resolver diretamente problemas no território da Federação da Rússia com certos tipos de armas. Não procuraria um sentido escondido. Reagimos sempre às ameaças à segurança da Federação da Rússia.
Vamos esperar pelas propostas. Prometeram-nos entregá-las dentro de uma semana, mais ou menos. Avisámos os nossos parceiros, especialmente os nossos parceiros norte-americanos, de que não se trata de um menu com opções a escolher, trata-se de um pacote único semelhante ao de liberdade de escolha de alianças, do que falámos hoje. Não se pode retirar este elemento da fórmula geral aprovada ao mais alto nível da indivisibilidade da segurança e da inadmissibilidade de reforçar a segurança de um país à custa da segurança dos outros. Isto já está a acontecer, grosso modo. Os nossos colegas começaram a sugerir: vamos discutir medidas de confiança, redução de armas, ser transparentes, informar uns aos outros sobre exercícios militares. Em primeiro lugar, na altura em que isto era relevante, a NATO ignorou a nossa proposta. Há quase três anos, o nosso Estado-Maior General havia proposto fazer um acordo para afastar os exercícios militares para longe da linha de contacto Rússia-NATO a uma distância acordada. Em segundo lugar, propusemos-lhes fazer um acordo sobre uma distância mínima que deveria ser mantida entre os aviões de combate e navios de guerra da Rússia e da NATO. A nossa proposta foi ignorada. Também foi ignorada a iniciativa do Presidente da Rússia, Vladimir Putin, de declarar uma moratória mútua sobre a instalação de mísseis terrestres de médio e curto alcance, caso haja verificação.
Hoje, após as reuniões em Genebra, estão prontos para falar sobre as três questões (sobre o afastamento dos exercícios, sobre medidas adicionais para evitar incidentes não intencionais e sobre mísseis de curto e médio alcance). Acontece que, quando nos ignoraram, não nos levaram a sério. Se o começarem a fazer agora, que Deus os ajude. Só ficaremos satisfeitos. Todavia, devem compreender que a chave para tudo isto é a garantia de não alargamento da NATO a leste. O resto encaixará no acordo global, mas o acordo tem de ser exatamente assim. Os norte-americanos apontam o dedo para a NATO dizendo que os EUA conversariam de bom grado connosco o que estamos a propor, mas Washington tem aliados. Penso que este não é uma maneira honesta de apresentar a situação. Dizem que não podem decidir nada sem os seus aliados. De modo geral, Washington precisa da NATO apenas para se afirmar como líder do Ocidente, para os manter alinhados com as suas políticas e os seus projetos. Todavia, a história da AUKUS, por exemplo, mostra como os EUA consideram os interesses dos seus aliados. Sabe como a França reagiu aos acordos de bastidores anglo-saxónicos.
Veja a história do Nord Stream 2. A Alemanha é também um país aliado dos EUA. Como os EUA consideram os interesses da Alemanha? De mau grado. A Alemanha tem de implorar para que os EUA não lhe imponham sanções.
Os norte-americanos destruíram o Tratado INF sem consultar os seus aliados. Só mais tarde é que os aliados começaram a dizer que os EUA estavam certos e que a Rússia deveria ter feito algo. No caso do Tratado de Céu Aberto ninguém consultou ninguém. É por isso que não vejo nenhum argumento convincente a dizer que os EUA não possam desempenhar aqui o papel principal.
Pergunta: Como avalia os resultados e o significado do Estado-União Rússia-Bielorrússia na nova arquitetura das relações internacionais?
Serguei Lavrov: Este espaço está em vias de formação. O Estado-União Rússia-Bielorrússia encontra-se numa fase acelerada de construção. A assinatura e adoção no ano passado de 28 programas de interesse da União que estão agora a ser implementados sob a forma de documentos de ação direta deu um grande impulso a este processo. Estes acordos-quadro estão a ser levados à prática. O Estado-União evoluirá no sentido de uma maior coordenação das ações em matéria de assuntos económicos internos, harmonização dos mecanismos aduaneiros, fiscais e outros. Temos o Parlamento da União, que será cada vez mais necessário à medida que os referidos processos se forem desenvolvendo.
Quanto à nossa capacidade defensiva, os recentes acontecimentos vieram acrescentar argumentos (se alguém ainda precisar deles) a favor dos esforços para reforça-la. Somos unânimes nesta questão.
Devo mencionar os nossos laços culturais, a harmonização e a equalização dos direitos dos nossos cidadãos. Este trabalho foi realizado a 90 por cento. Deve ser estendido às restantes áreas. Existem aí pequenas lacunas. Idealmente, deveríamos criar condições absolutamente idênticas para viagens, para o alojamento nos hotéis, para a prestação de serviços médicos e muitas outras coisas que são importantes para as pessoas na sua vida quotidiana. No âmbito destes 28 programas, devemos aproximar e, no final de contas, harmonizar completamente as condições de fazer negócios.
Temos uma estreita coordenação, posições iguais em assuntos internacionais. De dois em dois anos, adotamos programas de ação concertada. Da última vez, adotámos este programa numa reunião conjunta das Cúpulas Dirigentes dos Ministérios. Todos os anos temos reuniões conjuntas das Cúpulas Dirigentes dos Ministérios, trocamos visitas de ministros. Tenho expetativas positivas em relação ao reforço Estado-União, tal como os nossos Presidentes decidiram. Além disso, os dois governos assinaram os programas conjuntos com base nas orientações deles recebidas.
Pergunta: No meio da crise no Cazaquistão, a comunidade de peritos sugeriu (o Ocidente receou ao ouvi-lo) que a Rússia e a Bielorrússia convidassem o Cazaquistão para fazer parte do Estado-União. O que é que acha desta ideia que preocupa os peritos ocidentais, devemos esperar que esta união se expanda?
Serguei Lavrov: Não temos o hábito de convidar ninguém. Temos um procedimento segundo o qual, se alguém apresentar o seu pedido, o seu pedido é considerado construtivamente. São os nossos colegas ocidentais que têm o hábito de "chamar" para as suas estruturas. Convidam agora todo o mundo a aderir à NATO. Este não é o nosso método. Somos pessoas educadas.
Pergunta: Quando é que surgiu a exigência de garantias de segurança? Qual é a sua atualidade? A União Soviética não fazia exigências semelhantes.
Serguei Lavrov: Sempre foi assim. A exigência de segurança traduziu-se, após a extinção da União Soviética nos anos 1990, em compromissos políticos que foram assumidos ao mais alto nível. Estes compromissos políticos foram indevidamente utilizados e não foram honrados pelos nossos colegas ocidentais. Quando pedimos, em 2009, que as garantias de segurança fossem transformadas de um compromisso político num compromisso jurídico e sugerimos fazer um acordo, eles disseram-nos: isto não nos diz respeito, as garantias de segurança legais só são dadas aos membros da NATO. Ao longo destes 30 anos históricos, chegámos a entender como devemos agir. Promessas, rezas de feiticeiros políticos não prestam. Como disse o Presidente da Rússia, apresentámos os documentos e insistimos em que a nossa principal preocupação de não alargamento da NATO seja juridicamente vinculativa. Em resposta, espero obter algo inteligível, para além das considerações que correm atualmente o mundo de que isso não convém ao Ocidente. Vamos ver o que nos apresentarão no "papel". Depois concluiremos quão sinceros eram os nossos colegas ocidentais não tanto nos anos 1990 como agora nas suas relações com a Federação da Rússia.