Declaração e respostas a perguntas da comunicação social do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, após a Semana de Alto Nível da 79.ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, Nova Iorque, 28 de setembro de 2024
Estamos a concluir os nossos trabalhos durante a Semana de Alto Nível da 79.ª sessão da Assembleia Geral da ONU. Tiveram a oportunidade de ouvir os meus discursos e conhecer os resultados dos eventos multilaterais realizados no âmbito do G20, do BRICS e de outros formatos. No total, os meus colegas e eu realizámos sete eventos multilaterais e 28 rondas de conversações bilaterais. Discutimos todas as principais questões da ordem do dia nas relações da Rússia com os respetivos Estados e analisámos o estado de implementação dos acordos alcançados pelos nossos líderes sobre assuntos bilaterais e regionais.
Dispensámos muita atenção aos problemas do Médio Oriente: o novo surto de conflito nos territórios palestinianos, no Líbano, na Síria, problemas em território iraquiano, as tentativas de incitar o Irão a provocar uma grande guerra no Médio Oriente. Falámos dos conflitos na região do Saara-Sahel, no Sudão, noutras regiões de África, no Afeganistão.
Aproveitámos esta oportunidade para expor as nossas avaliações atuais daquilo que está a acontecer em torno da crise ucraniana.
As nossas iniciativas de formar uma arquitetura de segurança euro-asiática independente, mecanismos de pagamento que não dependam dos caprichos do Ocidente e ideias de reformar as instituições mundiais de modo a refletir o peso real dos países da Maioria Mundial, do Sul Global e do Leste foram bem acolhidas.
Gostaria de felicitar toda a gente pelo Dia Internacional do Acesso Universal à Informação que hoje se celebra. Este dia foi proclamado pela UNESCO em 2015 e consagra o direito de todos de procurar, receber e divulgar livremente informações.
Neste contexto, gostaria de vos contar como este dia é celebrado na Alemanha. Noticia-se ter sido detido um casal suspeito de organizar a transmissão online de vários canais de televisão russos no país. De acordo com os serviços aduaneiros alemães, os suspeitos são um alemão de 37 anos e a sua mulher de 42 anos, de nacionalidade ucraniana. Podem ser condenados a uma pena de prisão de um ano. Assim a alfândega alemã felicitou pelo Dia de "Acesso" à informação as pessoas que queriam distribuí-la livremente.
Pergunta (tradução do inglês): Ontem, o ex-Presidente Donald Trump encontrou-se com Volodimir Zelensky. Ele prometeu que, se vencer as eleições em novembro, resolverá rapidamente a questão da guerra. Poderia comentar esta notícia? O que pensa sobre este encontro?
Serguei Lavrov: Donald Trump disse há alguns meses que precisaria de 24 horas para fazer isso. Agora diz outra coisa.
Acolheremos de bom grado todas as iniciativas que conduzam ao resultado desejado. E só pode haver um - a resolução deste problema com base na eliminação das causas profundas da crise ucraniana que são as seguintes: apesar das garantias que nos foram dadas, a NATO continua a expandir-se, o Ocidente não cumpriu os seus compromissos, que foram aprovados ao mais alto nível na OSCE e que consistiam em fazer com que ninguém reforçasse a sua segurança à custa da segurança de qualquer outro país, e que nenhuma organização na área da OSCE pretendesse dominar.
A NATO estava a fazer exatamente isso - a ampliar a sua expansão, a "engolir" Estados, a colocar nos seus territórios o seu material e infraestruturas de guerra. A Ucrânia era a próxima da fila. Isto criou ameaças diretas à segurança da Federação da Rússia. O plano da NATO era estabelecer bases militares na Crimeia e no Mar de Azov e aí colocar as suas armas, o que ameaçaria o nosso país. Não podíamos permitir que isso acontecesse.
A segurança de um país é sempre importante. Não é necessária como uma coisa abstrata, mas como algo de que as pessoas comuns necessitam. Agora, o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, e o seu representante afirmam que a posição desta Organização mundial é inabalável, que apoia a resolução da crise o mais rapidamente possível com base no direito internacional, na Carta das Nações Unidas, observando-se a integridade territorial da Ucrânia. O chefe do Secretariado precisa de conhecer a Carta em profundidade e pormenor. Acabei de abordar esta questão na reunião plenária.
Para mim, o aspeto mais importante deste documento (aparentemente os fundadores da Organização eram da mesma opinião) é que o primeiro artigo proclama a necessidade de respeitar os direitos de todos os seres humanos, independentemente da sua raça, sexo, língua e religião.
Os nossos colegas ocidentais colocam, com ou sem razão, os direitos humanos em primeiro plano em todas as ocasiões. Fizeram tudo o que estava ao seu alcance para hipertrofiar estes direitos no Pacto do Futuro e coloca-los em primeiro plano. O Pacto até diz que o Conselho dos Direitos Humanos deve ser investido de poderes que não dependam dos Estados-Membros. No entanto, no caso da crise ucraniana, o Ocidente não faz qualquer referência aos direitos humanos.
Citei a necessidade de respeitar os direitos de todos os seres humanos, independentemente da sua língua ou da sua religião. Recordei hoje à Assembleia-Geral que, na Ucrânia, a língua russa foi legalmente extinta em todos os níveis de educação, desde a educação infantil até ao ensino superior. Todos os meios de comunicação social de língua russa foram expulsos da Ucrânia ou encerrados. Na esfera cultural, os livros em russo são atirados para fora das bibliotecas, como ocorreu na Alemanha de Hitler. A Igreja Ortodoxa Ucraniana canónica foi proibida. Além disso, a Constituição da Ucrânia continua a afirmar que o Estado garante os direitos dos ucranianos de origem russa e de outras minorias étnicas, incluindo os direitos à educação, etc.
Não conseguimos obter uma resposta do Ocidente nem do Secretário-Geral da ONU, António Guterres: por que razão estão todos a manter o silêncio quando há tantas iniciativas relativas à busca de uma solução?
O principal é o problema da segurança em termos da inadmissibilidade da Ucrânia de aderir à Aliança do Atlântico Norte ou a qualquer outro bloco militar e o problema dos direitos humanos.
Não se trata de territórios, como afirma Volodimir Zelensky: pede que lhe devolvessem os territórios dentro das fronteiras de 1991. Não estamos a falar de territórios, mas de pessoas que viveram nestas terras durante séculos, desenvolveram-nas, construíram fábricas, estradas, navios e muitas outras coisas. Estas são as verdadeiras causas.
Se Donald Trump conseguir revogar estas leis de que estamos a falar, já será um passo em frente. É muito fácil. Basta organizar uma votação.
No entanto, há outro aspeto também silenciado neste momento. O Presidente russo, Vladimir Putin, pôs várias vezes a tônica nele. Na Ucrânia, existe um decreto de Volodimir Zelensky que proíbe as negociações com a Rússia. Por conseguinte, não posso especular sobre a forma como vão estabelecer um "processo".
A nossa posição é muito clara. É preciso eliminar as causas profundas. Toda a gente as conhece.
Pergunta (tradução do inglês): A Rússia é a favor de um sistema multipolar, da cooperação entre as principais potências para tornar este mundo um pouco melhor. Considera que uma guerra no Médio Oriente, se Israel e os seus aliados vencerem, irá enfraquecer a Rússia e a doutrina russa de um sistema multipolar? O que pode a Rússia fazer para que este mundo continue a ser construído com base na cooperação entre as principais potências, sem deixar uma potência hegemónica, principalmente no Médio Oriente?
Serguei Lavrov: Não se trata da forma como os acontecimentos no Médio Oriente, estas tragédias (sem exagero) irão ou não afetar a nossa posição no cenário internacional. Só queremos salvar a vida das pessoas.
Desde o ataque terrorista de 7 de outubro de 2023, que condenámos veementemente, nos territórios palestinianos, em resultado da campanha de Israel para punir coletivamente os palestinianos, 41 000 civis palestinianos foram mortos num ano (desde outubro de 2023), de acordo com novas estatísticas, e cerca de 100 000 ficaram feridos. Os números continuam a aumentar.
Em comparação, após o golpe de Estado na Ucrânia em 2014, quando os golpistas que chegaram ao poder declararam as pessoas que viviam no leste do país como terroristas e desencadearam uma guerra civil contra elas, o número de civis mortos em ambos os lados do conflito ucraniano nesses dez anos é duas vezes e meia inferior ao de palestinos mortos em um ano. É uma estatística reveladora. E continua a mudar. Temos interesse em pôr imediatamente termo a este massacre.
Os americanos encerraram todos os mecanismos existentes para facilitar os processos no Médio Oriente. Trata-se, antes de mais, do "quarteto" de mediadores internacionais, que incluía a Rússia, os Estados Unidos, a ONU e a UE. Agora, os Estados Unidos querem monopolizar os esforços de mediação e estão a organizar diversos formatos: ou com os nossos colegas jordanos, ou com os nossos colegas egípcios ou do Qatar. de qualquer maneira, os americanos continuam a tentar gerir tudo sozinhos. São os Estados Unidos que preparam documentos que mostram a todo o mundo e que consideram permitir que o conflito termine. Todavia, Israel aumenta sempre as suas exigências. O que aconteceu ontem em Beirute é mais um assassínio político. Ouvi o Presidente dos EUA, Joe Biden, dizer que esta foi a decisão correta. Eles têm, portanto, uma visão um pouco diferente de como se devem comportar em conflitos e ao que devem seguir. Lembram-se de como a então Secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, se admirou e riu olhando para o ecrã em que aparecia em direto o Presidente da Líbia, Muammar Gaddafi, a escorrer sangue? Ou da sua colega Madeleine Albright, que, comentando os processos iniciados pela agressão americana ao Iraque, disse que a democracia valia a morte de 400 mil pessoas. Toda a gente sabe que não havia armas de destruição em massa no Iraque, como os americanos faziam crer para justificar a sua invasão.
Os EUA querem monopolizar os processos não só no Médio Oriente. Querem também dominar a " região do Indo-Pacífico". Para tanto, estão a criar estruturas de toda a espécie como AUKUS, Quad, Quarteto (Nova Zelândia, Austrália, Japão e Coreia do Sul). Estão a arrastar as Filipinas para uma organização semelhante ao Quad. Utilizam os métodos já ensaiados. Quando se ocupam dos problemas regionais, só pensam numa coisa: preservar a sua hegemonia e dominar tudo.
A Rússia não tem ambições do gênero. É desumano fechar os olhos a centenas de milhares de vítimas e continuar a avançar para o objetivo principal de manter a sua hegemonia.
Pergunta: Nesta Assembleia Geral, falou-se muito da reforma da ONU. O Presidente finlandês, A. Stubb, também falou muito do assunto e propôs excluir a Rússia do Conselho de Segurança da ONU. Será isto possível? Como devemos encarar propostas como esta?
Serguei Lavrov: Os "finlandeses temperamentais” são um povo especial. Conheço bem A. Stubb desde que era Ministro dos Negócios Estrangeiros da Finlândia. Após o fim da guerra dos "cinco dias" desencadeada por Mikhail Saakashvili na Ossétia do Sul contra a Força de Paz russa, A. Stubb deslocou-se a Tbilisi e visitou Moscovo na sua viagem de regresso. Preparando-se para as negociações com os nossos peritos, contou-me ("frente-a-frente”) as suas impressões sobre o encontro com Mikhail Saakashvili. Usou um adjetivo impublicável e o substantivo "lunático" para descrevê-lo. Não é difícil adivinhar de que adjetivo se tratava. Quando o instei a dizer a todo o mundo que tipo de pessoa era Saakashvili, ele disse que não valia a pena.
Poderia citar muitas histórias do folclore escandinavo. Mas uma outra coisa me surpreende mais. A. Stubb quer ser "mais" ucraniano do que os próprios ucranianos. Sei que os representantes do regime de Kiev não se cansam de falar da ilegitimidade da Federação da Rússia, porque a Carta das Nações Unidas diz "União das Repúblicas Socialistas Soviéticas". Gostaria de salientar que a China aparece na Carta como "República da China" e não como "República Popular da China". Ficou como estava na altura em que a ONU foi criada, quando Taiwan representava a China. Quando a República Popular da China recuperou os seus direitos, quando a Rússia, enquanto sucessora da União Soviética, se tornou membro do Conselho de Segurança, decidiram não alterar nada, porque tudo estava claro.
Fiquei mais surpreendido com o facto de o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, ter afirmado, a propósito da reforma do Conselho de Segurança da ONU, que "a Europa está sobre-representada". Entre os Cinco Membros Permanentes apenas a França, o Reino Unido e a Federação da Rússia representam a Europa. Durante o encontro que tive ontem com Guterres, perguntei-lhe se acreditava realmente que somos da mesma categoria de Londres e Paris. Respondeu-me: "Bem, quem mais são vocês?". Esta visão do quadro geopolítico do mundo sugere pensamentos "sérios", uma vez que se trata do Secretário-Geral da ONU.
Pergunta (tradução do inglês): Ontem, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, esteve presente no edifício da ONU, um edifício construído para manter a paz e a segurança. Também ontem, o líder do Hezbollah, H. Nasrallah, foi morto num ataque em Beirute. Permitirá o seu assassinato fazer parar Israel ou ele quererá "continuar" e conquistar o Sul do Líbano?
Serguei Lavrov: Este não é o primeiro assassinato político. Lembram-se do chefe do Bureau Político do Hamas, I. Haniyeh, que foi assassinado na capital iraniana durante a cerimónia fúnebre do ex-Presidente da República Islâmica do Irão, I. Raisi? Não foi um simples assassínio político. Este foi um assassínio particularmente cínico. Houve também um ataque ao consulado iraniano na Síria, onde também foram mortos cidadãos iranianos. Agora, o Secretário-Geral do Hezbollah, H. Nasrallah, foi assassinado.
Parece a muitos (e a mim também) que Israel quer criar um motivo para envolver diretamente os EUA nesta guerra e está a provocar para tanto o Irão e o Hezbollah de todas as formas possíveis. Parece-me que os dirigentes iranianos estão a comportar-se de uma forma extremamente responsável. Este facto deve ser devidamente avaliado.
Algo semelhante verifica-se na Ucrânia. Volodimir Zelensky também está a fazer os possíveis para envolver os países da NATO nas hostilidades diretas. Depois, ficará de lado a olhar para o que pensa que o vai salvar. Não creio que este seja o caminho certo. Estou convencido de que tem de acabar com o derramamento de sangue e abandonar os métodos terroristas de ajuste de contas políticas.
Pergunta (tradução do inglês): Os seguidores do Hezbollah pensam que o Irão os abandonou e que todos os slogans de que "apoiaremos o Hezbollah, lutaremos convosco" não funcionam. Quando chegava um momento importante, o Irão costumava acompanhar a situação através de intermediários e não se envolver nela. O assassinato de Nasrallah provocará uma retaliação por parte do Irão?
Serguei Lavrov: Não me considero no direito de comentar as coisas relativas aos problemas e interesses do Irão. Não posso responder a perguntas sobre o que o Irão vai fazer. É incorreto e descortês.
Pergunta (tradução do inglês): O Presidente Volodimir Zelensky afirmou várias vezes que a Rússia planeia atacar as centrais nucleares ucranianas. Tem algum comentário sobre isto?
Como sabe, o Brasil, a China e outros países correligionários criaram a plataforma "Amigos da Paz" para mediar a crise russo-ucraniana. A Rússia está a considerar algum plano de paz proposto pelo Sul Global?
Serguei Lavrov: Quanto às declarações do Sr. Zelensky, toda a gente já está habituada a ouvir seus "impromptus". Quando atuava em palco, lendo os textos escritos, ele saia-se melhor, o que não pode ser dito sobre os seus “improvisos”. Zelensky afirma que cada ponto da "fórmula de paz" se baseia nos princípios e normas da Carta das Nações Unidas. Volodimir Zelensky reagiu à iniciativa sino-brasileira de forma grosseira, dizendo que não compreendia o motivo por que a tinham apresentado, afirmando que queriam um Prémio Nobel da Paz por ela. E acrescentou que não existiam versões diferentes da Carta das Nações Unidas para diferentes partes do mundo, não existia uma carta especial para os BRICS, o G7, a Rússia e o Irão, a China e o Brasil. Zelensky valorizou “devidamente” os esforços envidados pelos nossos colegas chineses e brasileiros com a melhor das intenções.
Na fase anterior, discutimos com os nossos colegas os seus planos. Perguntei-lhes qual seria o conteúdo concreto desta iniciativa. Na iniciativa sino-brasileira todas as palavras estão corretas - apelos à paz, à justiça e ao cumprimento do direito internacional. Ninguém está a contestar isso. Como é que eles planeiam concretamente avançar para a paz - ainda ninguém me disse. Esta questão ainda está a ser analisada. Foi anunciada a criação de um "Grupo de Amigos", que não incluía todos os países presentes na reunião. O "Grupo" foi criado em Nova Iorque a nível dos representantes permanentes. Não sei se é possível abordar seriamente esta questão a partir daqui, mas estou certo de que os representantes permanentes são pessoas talentosas. Vamos ver o que produzirão.
Mais importante ainda, a Iniciativa de Segurança Global lançada pelo Presidente chinês, Xi Jinping, em fevereiro de 2023 e dedicada à resolução de todos os conflitos refere que é necessário chegar a acordo para resolver as causas profundas do conflito.
As causas profundas do conflito na Ucrânia são as tentativas de arrastar o regime de Kiev para a NATO. Este objetivo continua na ordem do dia. J. Stoltenberg e outros representantes da Aliança repetem-no regularmente com uma persistência invejável. A segunda razão são os direitos humanos. O extermínio da língua russa, da cultura russa, do ensino em russo e da Igreja Ortodoxa canónica. Em Israel, ninguém proibiu oficialmente a língua árabe, enquanto Zelensky proibiu o russo, embora este seja falado não só pelos ucranianos de origem russa, mas também pela maioria da população ucraniana.
Os representantes permanentes, que estarão empenhadas em concretizar este conceito, não poderão passar ao lado destes argumentos e causas profundas. Terão de se guiar pelos princípios da Carta das Nações Unidas na sua totalidade e interligação e não de forma seletiva.
Os direitos humanos são um princípio da Carta das Nações Unidas, violado da forma muito grosseira. Até a Constituição ucraniana contém obrigações de respeitar os direitos das minorias nacionais em todos os aspetos. Ao interpretar o princípio da integridade territorial, não se pode ignorar a sua ligação com o princípio da autodeterminação dos povos. Também existe um consenso sobre esta questão - em 1970, a Assembleia Geral da ONU adotou por unanimidade uma Declaração na qual decidiu que a integridade territorial dos Estados cujos governos representam todo o povo que vive num determinado território deve ser respeitada.
Porque é que todo o mundo acolheu tranquilamente a declaração unilateral de independência do Kosovo em 2008? Os Estados Unidos aplaudiram este acontecimento, dizendo que era uma manifestação do direito de uma nação à autodeterminação. A propósito, não houve hostilidades militares no Kosovo na altura.
Alguns anos mais tarde, em 2014, após um golpe de Estado sangrento na Ucrânia, os fascistas que tinham tomado o poder no país decidiram atacar a Crimeia. Esta última realizou um referendo. Os americanos disseram que isso não podia ser feito, uma vez que o princípio da integridade territorial se aplicava nesta situação.
É importante que aqueles que desejam sinceramente ajudar a encontrar uma solução para esta crise compreendam as verdadeiras causas. Há que seguir a Carta das Nações Unidas na sua totalidade e na inter-relação dos seus princípios. Este é o meu pedido, a minha mensagem para aqueles que vão trabalhar no Grupo dos Amigos da Paz.
Pergunta: Representantes dos separatistas que atuam no Mali afirmaram em declarações ao canal de televisão France 24 que estão em contacto com a Ucrânia. Como pode a Rússia, aliada do Mali, comentar o facto de existirem contactos entre os que são contra o governo do Mali e a Ucrânia? O que deve ser feito para que a comunidade internacional chame a Ucrânia a contas?
Serguei Lavrov: Já comentámos esta situação. Ficou provado pelos factos que os ucranianos estão a trabalhar com organizações terroristas que lutam contra o governo legítimo do Mali. Recentemente, houve um ataque a um grupo de militares do Mali, com um grande número de mortos. O ataque foi perpetrado por terroristas ligados a ucranianos.
Este não é o único lugar do planeta. Na Síria, o Hayat Tahrir al-Sham continua a governar na zona de desescalada de Idlib. Os ucranianos também têm laços com eles. Recrutam combatentes para os enviar para os campos de batalha ou ajudam-nos a preparar provocações.
Após o assassinato de soldados malianos por terroristas, o Mali, o Níger e o Burquina-Fasso apelaram ao Conselho de Segurança das Nações Unidas para que condenasse tais atividades da Ucrânia. Dois destes países cortaram relações diplomáticas com a Ucrânia.
Isto é banditismo. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para que os países africanos, que querem viver a seu critério e escolher por si próprios os seus caminhos de desenvolvimento, tenham apoio no domínio da segurança e da defesa. Estamos a tratar deste assunto.
Pergunta (tradução do inglês): A minha pergunta é sobre a iniciativa sino-brasileira. A declaração de ontem dizia que a iniciativa tinha em conta os interesses legítimos das partes. Este anúncio foi feito após a sua declaração. Considera que este plano permitirá sair do impasse existente? Como disse, as causas profundas têm de ser eliminadas. A declaração de ontem é clara sobre elas?
Serguei Lavrov: Leia o que citou e compare o texto com o que acabei de dizer. Não vi nenhum plano de ação no documento, mas apenas uma declaração de intenções. Esta é uma forma - devemos lutar por tudo o que é bom contra tudo o que é mau.
Há muitos anos, o conflito israelo-palestiniano voltou a ser analisado no Conselho de Segurança da ONU. Nessa altura, o "quarteto" de mediadores (Rússia, Estados Unidos, Secretariado da ONU e União Europeia) elaborou um "roteiro" para a resolução do conflito israelo-palestiniano através da criação de um Estado palestiniano independente. O roteiro tinha vigência de um ano, consagrando os passos a dar todos os meses. Este era um plano. Mas não se concretizou. De contrário, não assistiríamos à guerra que está agora a ser travada no Médio Oriente.
O meu conselho para aqueles que vão trabalhar em Nova Iorque no grupo dos Amigos da Paz: leiam a Carta das Nações Unidas. Falei detalhadamente sobre isso tanto na sessão plenária como no Conselho de Segurança da ONU. Toda a gente sabe isto há muito tempo.
Isto começou com o golpe de Estado na Ucrânia. Durante todos estes anos temos vindo a advertir contra as tentativas de arrastar a Ucrânia para a NATO e que não toquem nos russos. Seis meses antes da operação militar especial, Volodimir Zelensky disse numa entrevista, respondendo a uma pergunta sobre a sua atitude para com as pessoas do outro lado da linha de contacto no Donbass que não aceitaram o golpe e contra as quais o regime de Kiev começara a lutar. Ele disse que "há pessoas e há espécies” Noutra ocasião, disse que se alguém se sentia parte da cultura russa e vivia na Ucrânia, deveria partir para a Rússia. Ninguém reagiu a esta afirmação.
O embaixador ucraniano no Cazaquistão, P. Y. Vrublevsky, numa entrevista, disse que o seu principal objetivo era matar o maior número possível de russos para que os seus filhos tivessem menos trabalho. Algum dos jornalistas chamou a atenção dos seus leitores para este facto? Que me lembre, nenhum.
Esta é uma questão séria. Não basta ter em conta os interesses. Só não percebo uma coisa: como é que os franceses e os suíços apareceram na reunião de ontem? Eles são a favor da Ucrânia, exigindo a sua vitória sobre a Federação da Rússia, fornecendo à Ucrânia armas e mísseis de longo alcance. Perguntei ao meu colega chinês. Ele disse que estes pediram muito para serem convidados. Decidiram coletivamente convidá-los como observadores. Este grupo ainda tem muito trabalho a fazer. Estamos prontos para os ajudar em conselhos. O mais importante é que as suas propostas se baseiem em realidades e não em conversas abstratas.
Pergunta (tradução do inglês): A minha pergunta vem no seguimento da que já fiz no ano passado. Pode dizer-me se existem negociações sobre as crianças ucranianas que foram levadas para a Rússia? O senhor disse que são apenas cerca de 100. Todavia, segundo os dados da Cruz Vermelha Internacional, são 19 mil. Que eu saiba, alguns países como o Qatar são mediadores nesta matéria.
Serguei Lavrov: Nós publicamos estes materiais. Não têm um representante em Moscovo?
Pergunta (tradução do inglês): Não. Mudei para outro meio de comunicação.
Serguei Lavrov: Desde o nosso último encontro, a informação sofreu várias atualizações. Não vou voltar a citar números. Mas convidámos muitos jornalistas estrangeiros para briefings especiais.
Há algum tempo, soube-se que muitas das crianças (centenas) que constavam das listas de crianças alegadamente "raptadas" pela Rússia foram encontradas na Alemanha. Há lá muitos "rapazes" que sofrem de passatempos não convencionais. Esta não é uma questão fácil.
Maria Zakharova: Gostaríamos de reiterar o nosso convite, na sua nova qualidade, para visitar a Rússia e realizar entrevistas com funcionários. Estamos à sua espera.
Pergunta (tradução do inglês): A venda dos sistemas S-400 pela Rússia à Turquia criou tensões com os Estados Unidos. Recentemente, um ex-ministro turco sugeriu que a Turquia poderia vender os sistemas S-400 a países terceiros, como a Índia ou o Paquistão. Como é que a Rússia reagiria a uma potencial venda de S-400? Que consequências teria para as relações russo-turcas?
Serguei Lavrov: O S-400 é um sistema de defesa antimíssil. Foi fornecido à Turquia. Não tenho nada a comentar. O Presidente turco, R. T. Erdogan, é um estadista experiente. Toma decisões no interesse do seu povo e do seu país.
A única coisa a “acrescentar”. Nos contratos de venda de armas, há uma disposição referente ao certificado de utilizador final. Para que se possa fazer qualquer coisa com os produtos entregues com esse certificado em que se indica o país que recebeu as armas como utilizador final, é necessário o consentimento da parte vendedora.
Pergunta (tradução do inglês): O ex-presidente dos EUA, Donald Trump, disse que a guerra na Ucrânia não teria começado se ele tivesse estado no cargo naquela altura. Se ele for reeleito, ela terminará no primeiro dia do seu mandato. O que pensa a Rússia da proposta de paz de Donald Trump se este for reeleito? Quais deverão ser as condições para que a Rússia a aceite?
Serguei Lavrov: Quanto a Donald Trump. A guerra nunca teria começado se...posso também mostrar uma retrospetiva. Fevereiro de 2014. O então Presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, e a oposição ucraniana que levou, com dinheiro ocidental, centenas de pessoas para protestar na praça principal (houve protestos intermináveis lá), assinaram um acordo para realizar eleições antecipadas. Segundo o documento, antes de estas se realizarem, seria criado um governo de unidade nacional. Esta cláusula foi garantida pela Alemanha, França e Polónia. Na manhã seguinte, a oposição invadiu e ocupou edifícios governamentais. Perguntámos por que razão o fizeram. Os nossos colegas alemães e franceses responderam-nos que a democracia, por vezes, faz "ziguezagues" imprevisíveis. Os americanos disseram-nos o mesmo.
Se tivessem honrado aquele acordo, a Ucrânia estaria dentro das fronteiras de 1991, do que Zelensky não se cansa de falar. Quem é que lhes pediu para minar a sua legitimidade? Enquanto este regime se mantiver no poder, a sua legitimidade ficará posta em causa. Nesse caso, a Crimeia também teria permanecido como parte da Ucrânia. Quero que todos compreendam. Isto se seguirmos a lógica do "que aconteceria se…”
Se os acordos de Minsk, que foram assinados um ano mais tarde e consagrados por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, tivessem sido cumpridos, a Ucrânia estaria íntegra, mas sem a Crimeia. Perderam a Crimeia quando colocaram bandidos no poder.
Em abril de 2022, os negociadores russos e ucranianos chegaram a um acordo em Istambul. Se este acordo tivesse sido cumprido, a Ucrânia ainda manteria parte do Donbass. Mas toda a vez que um acordo que a Rússia aceita sempre é frustrado a Ucrânia fica mais pequena.
Sobre os acordos de Istambul. O chefe da delegação ucraniana, D. Arahamiya, deu recentemente uma entrevista em que admitiu que o então primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, veio e disse à parte ucraniana que esta não precisava de nenhuns acordos e que deveria continuar a lutar enquanto o Ocidente lhe daria mais armas e dinheiro.
Cite os factos. Se a Ucrânia continuar a seguir o seu próprio caminho e usar alguns truques para ganhar tempo, não terá sucesso.
Espero que os nossos amigos chineses e brasileiros e aqueles que se juntaram ao grupo dos Amigos da Paz tenham plenamente em conta as maneiras e os hábitos da atual liderança ucraniana e as suas tentativas intermináveis de atrair todos, através de artifícios, para um terreno instável.
Pergunta (tradução do inglês): O Presidente do Azerbaijão, Ilkham Aliyev, e o Primeiro-Ministro da Arménia, Nikol Pashinyan, participarão nas cimeiras dos BRICS e da CEI que terão lugar na Rússia em outubro de 2024. Está prevista alguma reunião entre os líderes dos dois países para discutir novas iniciativas de paz ou negociações com a participação russa?
Serguei Lavrov: Como se costuma dizer, tudo depende deles. Se quiserem reunir-se, como os ministros se reuniram aqui (nos EUA) com a participação do Secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken.
Os americanos querem realmente dominar a situação nesta questão, como eles fazem no Médio Oriente. É importante para eles mostrarem que são os donos da situação. Se for do agrado dos nossos amigos azeris e arménios, a escolha é dos seus respetivos líderes.
Estamos sempre prontos a cumprir o que acordámos nos encontros em que participamos a partir de novembro de 2020. No espaço de dois anos, os dirigentes da Rússia, do Azerbaijão e da Arménia reuniram-se mais três vezes (1, 2, 3). Foi criado um grupo de trabalho trilateral para desbloquear as vias de transporte. Existem mecanismos para delimitar a fronteira, etc. Estamos dispostos a cumprir todas as nossas obrigações consagradas no acordo.
Pergunta (tradução do inglês): Uma breve pergunta sobre o assassinato do líder do Hezbollah, H. Nasrallah. O que pode a Rússia fazer para evitar que estas consequências se estendam à Síria e ao Iraque?
Serguei Lavrov: Volto a repetir que queremos que o Conselho de Segurança da ONU mostre a sua vontade e cumpra as suas funções. O Conselho de Segurança tem instrumentos necessários para agir sobre as partes que não cumprem as suas decisões.
Os americanos não permitem que o Conselho de Segurança da ONU tome tais medidas. Pela mesma razão - querem manter tudo nas suas mãos. Os problemas que existem no mundo já não cabem numa ou mesmo em duas mãos. Esta é a nossa resposta.
Eles bloquearam todas as propostas. A resolução que eles próprios apresentaram para a aprovação foi uma "manobra enganosa". Os americanos disseram que Israel estava disposto a honrá-la. Era uma mentira. Nós, prevendo isso, abstivemo-nos e só não a vetámos porque os nossos amigos árabes nos pediram para lhe dar uma oportunidade.
Sobre como evitar que o conflito "se estenda" a outros países. Já respondi. É isso que podemos e vamos fazer.
O nosso contingente de tropas está na Síria a pedido do Governo legítimo do país para o ajudar a garantir a segurança. Cumprirá todas as suas funções.
Mais uma vez, tenho a sensação de que há quem queira provocar, primeiro o Irão e depois os Estados Unidos, e iniciar uma plena guerra em toda a região.
Pergunta (tradução do inglês): A Rússia está a pedir à Turquia e à Síria que normalizem as suas relações. Se isso acontecer, como irá afetar os curdos sírios?
Serguei Lavrov: Já tivemos reuniões sobre a normalização das relações sírio-turcas. No ano passado, houve reuniões dos Ministros da Defesa e dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Irão, Turquia e Síria. Uma espécie de Troika de Astana sobre a resolução do conflito sírio.
As reuniões foram proveitosas. Conversei recentemente aqui com o meu colega turco. Falei também sobre este assunto com o novo Ministro dos Negócios Estrangeiros e dos Assuntos dos Compatriotas Residentes no Estrangeiro da Síria, B. Sabbagh. Há ideias de ambos os lados que, na minha opinião, deveriam permitir retomar este processo.
Sim, tem razão. A questão curda será uma das principais questões durante estas negociações, juntamente com as questões da redução dos riscos de terrorismo e da segurança das fronteiras.
Houve precedentes. Temos o Acordo de Adana de 1998, que não pode ser diretamente aplicado neste momento. Mas o conceito nele estabelecido (evidentemente, precisa de ser adaptado), que envolve a cooperação entre a Síria e a Turquia para garantir a segurança na fronteira e reprimir os grupos terroristas, é perfeitamente realizável.
Um grande problema é a atividade dos EUA, que também querem fazer as coisas à sua maneira. Ignorando os interesses da Turquia e da Síria, estão a ocupar ilegalmente o território da República Árabe da Síria - na margem esquerda do Eufrates. De facto, criaram ali um quase-Estado. Extraem petróleo sírio, colhem cereais, vendem-nos e utilizam o dinheiro para sustentar os seus "pupilos".
Estou convencido de que as organizações curdas têm de se alheiar categoricamente do terrorismo e compreender finalmente que não têm outra opção senão viver como parte do Estado sírio. A certa altura, estávamos prontos para mediar, encontrámo-nos com os seus líderes. Eles conhecem a nossa posição. Vieram pedir-nos ajuda quando o Presidente Donald Trump anunciou que os americanos iam "retirar-se" da Síria. Representantes curdos vieram falar connosco. Passados alguns dias, os americanos disseram que tinham mudado de ideias e que não iam a lado nenhum. E os curdos perderam o interesse. Esta é uma posição oportunista que não reflete uma visão de longo prazo para o futuro do povo curdo. É preciso negociar com Damasco. Que eu saiba, os vizinhos turcos estão dispostos a ajudar neste processo.
Pergunta (tradução do inglês): Depois de o Primeiro-Ministro israelita, B. Netanyahu, ter rejeitado a proposta de cessar-fogo, existe alguma possibilidade de aplicar a resolução 2735 no contexto da escalada na região?
Serguei Lavrov: Relativamente à resolução 2735. Não é a mim que deve dirigir a sua pergunta. Deve dirigi-la a Israel e também aos Estados Unidos. Eles garantiram-nos que esta resolução iria reduzir drasticamente as tensões e permitiria iniciar a desescalada. Estavam a dizer isso, pessoas sérias, a enganar-nos a todos. Não estou a ver a vontade de Israel de cumprir quaisquer planos de paz.
Pergunta (tradução do inglês): A minha pergunta é sobre a Ucrânia. O Presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que o levantamento das restrições à utilização de mísseis de longo alcance fornecidos pelo Ocidente à Ucrânia seria uma declaração de guerra. Sabemos que estão prestes a anunciar o levantamento. Talvez limitem o alcance a 20-40 quilómetros, mas isso pode acontecer.
Serguei Lavrov: Já respondi a esta pergunta.
Pergunta (tradução do inglês): Acabou de dizer que gostaria que o Conselho de Segurança da ONU assumisse a responsabilidade de evitar uma guerra em grande escala na região. Que instrumentos considera que o Conselho de Segurança poderia utilizar, tendo em conta o constante recurso ao veto, nomeadamente no caso de Gaza? Deverá ser considerado o Capítulo 7 da Carta das Nações Unidas?
Serguei Lavrov: Eu disse que o Conselho de Segurança da ONU tem opções. Entre elas está o Capítulo 7 da Carta das Nações Unidas. Embora todas as resoluções do Conselho de Segurança devam ser cumpridas. É o que diz o artigo 25º da Carta da ONU. O Capítulo 7 é coercivo para aqueles a quem são dirigidas as respetivas resoluções do Conselho de Segurança.
Por exemplo, uma resolução exige que seja "posta em cima da mesa" uma resolução para suspender o fornecimento de armas em qualquer conflito, quando as coisas vão demasiadamente longe. Naturalmente, toda a gente sabe que os americanos vão vetar essa resolução, como já fizeram antes.
Podemos propor sanções contra aqueles que não cumprem as resoluções do Conselho de Segurança da ONU. Mas esta proposta também será vetada. Os instrumentos existem. Não devemos ficar desanimados com o facto de uma resolução ser bloqueada. Nem sempre é possível bloquear uma resolução sem prejudicar a sua reputação.
Talvez isto tenha algum resultado. Como se costuma dizer na Rússia, a " água mole em pedra dura…”. A situação é complicada.
Pergunta (tradução do inglês): O Primeiro-Ministro israelita, B. Netanyahu, disse ontem que o "braço longo" de Israel pode alcançar todos no Médio Oriente. Tendo em conta o assassinato do Secretário-Geral do Hezbollah, H. Nasrallah, espera que haja perspetivas de uma solução de paz para o Médio Oriente?
Serguei Lavrov: Já respondi várias vezes ao que sentimos em relação ao que está a acontecer. É urgente pôr cobro a esta situação.
Pergunta (tradução do inglês): A Rússia pode aceitar o aumento do número de membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU de 5 para 10? Pode comentar este assunto?
Serguei Lavrov: Sobre a reforma do Conselho de Segurança da ONU. Não ouvi falar da ideia de fazer com que o número de permanentes aumentasse para 10. Há muitas ideias como esta a circular por aí.
A nossa posição é bem conhecida - o Conselho deve ser reforçado exclusivamente por candidatos de África, Ásia e América Latina. Não pode haver um aumento do número de países ocidentais e dos seus aliados (como o Japão).
Pergunta: Pode comentar as alterações à doutrina nuclear russa recentemente anunciadas pelo Presidente Vladimir Putin? Trata-se de um sinal para o Ocidente? Em caso afirmativo, que tipo de sinal gostaria Moscovo de enviar?
Serguei Lavrov: O Presidente Putin disse tudo. Tudo é claro, sem quaisquer exceções.
Quando dizemos algo publicamente (especialmente o Presidente Putin), partimos do princípio de que aqueles que estão interessados em conhecer a nossa posição o ouvem. Não me cabe a mim julgar a forma como o entendem.
Quando se tornar definitivamente claro se vão dar à Ucrânia autorização para usar armas de longo alcance, então será claro como entenderam o que ouviram.
Pergunta (tradução do inglês): A cimeira dos BRICS terá lugar dentro de três semanas. Está prevista a participação de países da América Latina? Qual é a atitude da Rússia para com a situação política na América Latina?
Serguei Lavrov: Certamente, não é como no caso da Doutrina Monroe.
Temos uma atitude de respeito para com todos os nossos parceiros. A América Latina é um pólo poderoso da ordem mundial policêntrica emergente. A CELAC está agora a tomar um novo fôlego após a chegada ao poder do Presidente brasileiro, Lula da Silva. Há muitas iniciativas, entre as quais as que visam criar mecanismos que permitam o comércio, a cooperação e o investimento, sem depender do que os Estados Unidos controlam através do FMI e da OMC.
Quanto às perspetivas de expansão dos BRICS. Nesta fase, todos os membros consideram oportuno não tomar novas decisões por enquanto e adaptar a nossa associação de países correligionários às novas circunstâncias. Éramos cinco, agora somos dez. É claro que devemos habituar-nos a isso e fazer com que os novos membros entrem gradualmente no trabalho, tendo em conta as tradições que se desenvolveram ao longo dos anos de existência do G-5.
A cimeira de Kazan analisará as recomendações que foram solicitadas pelos líderes na cimeira de Joanesburgo de 2023 - apresentar propostas sobre o que poderiam ser as modalidades da nova categoria (países parceiros do grupo BRICS), que participarão constantemente como parceiros e não como convidados em quase todas as atividades da nossa associação.
Existem listas de países prontos a tornar-se parceiros. São cerca de 20. Uma outra dezena de países ou até mais pretende manter contactos regulares sem assumir o estatuto de parceiro. Cabe aos seus presidentes decidir. Não estou disposto a antecipar se chegarão a acordo. Far-se-á a comunicação.
Pergunta: Mencionou a Geórgia no seu discurso. Como poderia comentar as recentes declarações de responsáveis georgianos segundo as quais a guerra foi iniciada por Mikhail Saakashvili? Considera que são possíveis e realistas novos acordos entre a Geórgia, a Ossétia do Sul e a Abcásia?
Serguei Lavrov: É óbvio que a atual liderança georgiana é honesta na sua avaliação do passado. Afirmaram que pretendem uma reconciliação histórica. Cabe aos próprios países – Abcásia e Ossétia do Sul - decidir a forma que esta pode assumir. São vizinhos da Geórgia. É inevitável estabelecerem contactos. Se houver interesse de todas as partes na normalização destas relações, na garantia de acordos de não agressão para que ninguém volte a querer combater, nós (se as partes estiverem interessadas) estaremos prontos a ajuda-las.
O facto de a guerra ter sido iniciada por Mikhail Saakashvili era do conhecimento de todos, exceto talvez dos nossos colegas ocidentais e da Presidente da Geórgia, S. Zarubishvili.
Imediatamente após 2008, a União Europeia encomendou uma investigação, que foi conduzida pela respeitada suíça H. Tagliavini. No relatório sobre os resultados da investigação estava claramente escrito que foi Mikhail Saakashvili quem começou tudo. Não há motivo para ficar surpreendido.
Pergunta (traduzida do inglês): Porque é que mencionou Bucha? Se eu fosse um funcionário russo, tentaria ignorar este massacre. O senhor incluiu este tema no seu discurso na Assembleia Geral da ONU.
Serguei Lavrov: O que é que o surpreendeu? Estou sempre a falar disso.
Encontrei-me com António Guterres em 2023, na reunião do Conselho de Segurança da ONU em que ele esteve presente. E um ano antes disso, em 2022.
Hoje é o Dia Internacional do Acesso Universal à Informação. E a senhora não tem acesso à informação que circula na Internet e nas redes sociais.
Em Istambul, em abril de 2022, foi acordado que deixaríamos de lutar e assinaríamos um acordo com os ucranianos. Mesmo antes de tudo isto ter fracassado, fomos solicitados a retirar, como gesto de boa vontade, as nossas tropas dos arredores de Kiev e da cidade de Bucha. Fizemo-lo, pensando que estávamos a lidar com pessoas decentes e não com mentirosos. Evidentemente, fomos enganados.
Há um vídeo na Internet em que, depois de as tropas russas terem saído, o presidente da câmara desta cidade afirma orgulhosamente perante as câmaras que os ucranianos recuperaram o controlo da sua "pequena" terra natal, que agora são eles os donos das suas terras e que não há mais russos lá.
Passaram dois dias. De repente, a equipa da "famosa" agência noticiosa "BBC" mostra imagens televisivas em que aparecem os corpos das pessoas mortas espalhadas na rua central da cidade. Foi dito que, quando os russos estiveram aqui, foram eles que cometeram este crime. Mais uma vez, isto aconteceu dois dias depois de termos saído de lá.
Foram anunciadas novas sanções devido a esta "história". Desde então, é inútil contar com qualquer investigação. Nós optámos pelo caminho mais fácil. Perguntámos se podíamos ver uma lista de nomes de pessoas cujos cadáveres tinham sido mostrados pela BBC. Houve silêncio. Perguntei a António Guterres. Voltei a levantar esta questão na nossa reunião de ontem. Ele prometeu abordar novamente o regime ucraniano. Mas já apelaram ao regime ucraniano várias vezes. Ninguém lhes está a dizer nada. Se o regime de Kiev não diz nada, significa que tem algo a esconder. O Gabinete do Alto Comissário para os Direitos Humanos também abordou o regime de Kiev a nosso pedido. Ninguém nos está a dizer nada. O assunto está encerrado. O Presidente Joe Biden descreveu-o como “massacre", "Putin é um carniceiro". Para nós, não há nada de misterioso nesta história. Trata-se de uma verdadeira provocação.
Algo semelhante aconteceu no caso de Aleksei Navalny. Quando adoeceu e os alemães pediram que fosse entregue a eles para tratamento, permitimos que o seu avião viesse buscá-lo. Nem sequer foram cumpridas as formalidades aeronáuticas necessárias. Levaram-no para um hospital civil, onde não encontraram nada de sério nele. Depois foi transferido para um hospital militar, onde encontraram a substância Novichok. Mais tarde, foi como que curado, regressou e morreu aqui.
Quando lá estava, pedimos aos alemães que nos mostrassem as análises que provavam que ele tinha sido envenenado com esta substância. Os alemães disseram que era segredo, que iriam entregar essa análise à Organização para a Proibição de Armas Químicas. Fomos até lá. Disseram-nos que os alemães os tinham proibido de nos mostrar a análise. Não acham nada de estranho nisso? Quando se fez um alvoroço após a morte de Navalny, voltámos a lembrar aos alemães e perguntámos-lhes se podíamos ver qual era a análise e como é que ele foi tratado antes de regressar à Rússia. Em resposta - silêncio total.
O mesmo aconteceu com o envenenamento dos Skripals em Salisbury. Nenhuma informação, apesar dos pedidos oficiais do nosso Comité de Investigação e da Procuradoria-Geral às suas congêneres britânicas.
O objetivo foi atingido, foi provocada uma celeuma nos meios de comunicação social, a Rússia foi acusada de tudo. Depois esta história sai das primeiras páginas da imprensa e dos noticiários televisivos. Nós sabemos isso. Vamos falar sobre os casos de Bucha e de Navalny e exigir a verdade.
Se estiverem interessados, organizem uma investigação jornalística. Perguntem aos ucranianos porque é que não conseguimos obter estes nomes. Meus amigos, vocês são profissionais. Espero que estejam interessados. Tentem descobrir.
Pergunta: O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, disse há dias que a Rússia e os Estados Unidos deviam reduzir o seu arsenal nuclear. Ele disse-lhe isso pessoalmente durante a reunião? Em que condições é que a Rússia está preparada para o fazer?
Serguei Lavrov: Ele não me disse nada. Não ouvi dizer que tenha dito isso. Por vezes faz declarações que não se enquadram claramente nas realidades existentes no cenário internacional.
Não estamos a aumentar o nosso arsenal, o que é sempre confirmado pelos nossos representantes oficiais. O Tratado entre a Federação da Rússia e os Estados Unidos da América sobre Medidas para uma Maior Redução e Limitação de Armas Estratégicas Ofensivas está em vigor até 2026. Consagra os níveis de armas. Guiamo-nos por estes números, pelo menos enquanto o Tratado estiver em vigor. Suspendemos a nossa participação no mesmo, mas afirmámos que iremos observar os níveis e trocar algumas informações com os americanos.
Mas, como é óbvio, não cabe ao Secretário-Geral da ONU decidir essas questões. É sempre desejável haver menos armas. Mas há realidades.