Artigo do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação da Rússia, Serguei Lavrov, para a revista "The International Affairs", 12 de outubro de 2023
"Rússia e Brasil: amizade testada pelo tempo", por ocasião dos 195 anos das relações diplomáticas
No dia 3 de outubro corrente, os nossos países celebraram um evento importante na sua história conjunta: o 195 aniversário do estabelecimento das relações diplomáticas. Este marco é uma boa oportunidade para analisar o caminho percorrido pelos nossos dois países, identificar os aspetos relevantes da parceria estratégica russo-brasileira e tentar lançar um olhar para além do horizonte.
Nos anos transcorridos, as nossas relações interestatais passaram por diferentes períodos. Ao mesmo tempo, os sentimentos de simpatia mútua, que nos unem, o interesse de cada um de nós pelas tradições e pela cultura da outra parte permaneceram sempre inabaláveis, contribuindo para o reforço dos nossos laços de amizade.
O primeiro contacto dos russos com o Brasil exótico teve lugar no início do século XIX quando uma expedição científica russa chefiada pelo diplomata e académico Grigori Langsdorf chegou ao país para estudar a sua flora e fauna. Os materiais recolhidos durante a viagem foram reconhecidos como grande feito científico da época e despertam, ainda hoje, interesse genuíno em antropólogos, etnógrafos, zoólogos, botânicos, historiadores da ciência e estudiosos da arte.
A cooperação bilateral foi oficializada em 1828. Naquele ano foi divulgado o decreto do imperador Nicolau I com a nomeação dum Embaixador Extraordinário e Ministro Plenipotenciário da Rússia no Brasil. Esta decisão marcou o início duma nova era na história não só das relações russo-brasileiras, mas também da interação da Rússia com a América Latina em geral. O Brasil foi o primeiro país da região a estabelecer relações diplomáticas com a Rússia.
No século XX, os nossos países lutaram heroicamente, ombro a ombro, contra o nazismo. O Brasil foi o único dos 20 países latino-americanos que integravam a coligação anti-hitleriana a enviar os seus soldados, um Corpo Expedicionário, para um teatro de guerra europeu, ou seja, para Itália. Guardamos a memória da nossa fraternidade de armas em prol duma vitória comum. Mantemos laços estreitos através das organizações de veteranos de guerra dos nossos países.
Apoiando-nos no capital de amizade e confiança mútua acumulado, continuamos a trabalhar para reforçar a parceria russo-brasileira construtiva e virada para o futuro. Isso é uma prioridade consagrada no Conceito de Política Externa da Rússia atualizado. Consideramos as nossas relações como o modelo de cooperação harmoniosa e construtiva em pé da igualdade soberana, respeito mútuo e consideração constante dos interesses uns dos outros, cooperação que não está sujeita às flutuações da conjuntura internacional.
Um dos nossos objetivos comuns consiste em reforçar o tecido da nossa cooperação através dos principais mecanismos bilaterais: a Comissão de Alto Nível de Cooperação, co-presidida pelo Primeiro-Ministro da Federação da Rússia e pelo Vice-Presidente do Brasil, bem como a Comissão Intergovernamental de Cooperação Económica, Comercial, Científica e Tecnológica e a Comissão para os Assuntos Políticos que fazem parte dela.
Mantemos um diálogo constante entre os nossos ministérios e departamentos, incluindo os serviços diplomáticos. Promovemos intercâmbios entre partidos e os parlamentos dos dois países. Uma delegação representativa do Brasil participou na Conferência Parlamentar Internacional "Rússia - América Latina", realizada em Moscovo entre 29 de setembro e 2 de outubro.
Estamos dispostos a melhorar duma forma consistente o quadro jurídico da cooperação bilateral que conta com mais de 60 documentos, entre os quais o Tratado fundamental sobre as Relações de Parceria entre a Federação da Rússia e a República Federativa do Brasil celebrado no dia 22 de junho de 2000.
Os nossos países mantêm uma cooperação mutuamente benéfica nas áreas comercial e económica. Desde 2010, o Brasil é firmemente o nosso principal parceiro comercial na América Latina. Mantemos uma boa cooperação em toda uma série de setores: indústria química, agricultura, energia, incluindo a energia nuclear, produtos farmacêuticos e uso pacífico do espaço. Gostaria de mencionar, em especial, os fornecimentos de fertilizantes russos para as necessidades do setor agroindustrial brasileiro, o que contribui muito para a segurança alimentar global.
A nossa cooperação prática bilateral possui um grande potencial. Para concretizar, os nossos dois países estão empenhados em diversificar as suas trocas comerciais, ampliar a sua cooperação em áreas intensivas das ciência e tecnologia, intensificar a sua cooperação em matéria de investimentos e os contactos diretos entre círculos empresariais. Neste contexto, as atividades do Conselho Empresarial Rússia-Brasil são muito importantes.
Temos bons resultados na promoção da cooperação entre regiões dos nossos dois países, inclusive através do estabelecimento de laços de geminação. Neste contexto, a experiência de Moscovo, São Petersburgo e Tatarstão, que são as regiões com uma posição cimeira na cooperação com regiões brasileiras entre as unidades federadas da Rússia, é particularmente relevante. Estamos dispostos a alargar este trabalho.
Prestamos grande atenção ao reforço dos intercâmbios russo-brasileiros nos domínios cultural e humanitário. Desde 2000, temos vindo a implementar o nosso projeto emblemático com êxito: a única escola do Teatro Bolshoi no estrangeiro, em Joinville (Santa Catarina). Esta Escola cumpre uma importante missão educativa e social, atraindo as crianças de famílias com baixos rendimentos para as artes. Os artistas formados pela Escola fazem parte das principais companhias de bailado do mundo.
Valorizamos o interesse constante da parte brasileira em expandir a cooperação com o nosso país no domínio de educação e em aumentar os nossos intercâmbios académicos. Em 2022, a primeira escola bilingue intercultural russo-brasileira abriu as portas no estado do Rio de Janeiro. A procura por cursos superiores na Rússia é grande entre os jovens do Brasil: a Rússia atende à procura concedendo bolsas de estudo.
A Rússia e o Brasil organizam regularmente festivais de música, teatro e cinema em que participam artistas destacados dos dois países. O mesmo pode-se dizer sobre as competições desportivas.
Gostaria de mencionar, em particular, os nossos laços estreitos no domínio de futebol. O amor por este desporto une os nossos povos. Tivemos a oportunidade de nos convencer disso mais uma vez quando o Brasil e a Rússia sediaram as Copas do Mundo em 2014 e 2018, respetivamente. Os nossos adeptos simpatizam sempre uns com os outros de uma forma sincera e amigável. Hoje em dia, vários clubes russos contam com craques da bola brasileiros. É simbólico que o início da amizade russo-brasileira no futebol tenha sido dado pelas estrelas do futebol mundial, Lev Iashin e Pelé, que mantiveram as relações mais calorosas durante muitos anos.
No contexto da diplomacia e das relações internacionais, não podemos deixar de nos congratular com o facto de o Brasil seguir uma política externa responsável e independente, prestando grande atenção à democratização das instituições de governação mundial e ao aumento do papel dos países em desenvolvimento. Estamos unidos por uma aspiração comum de construir uma ordem mundial policêntrica mais justa, baseada nos princípios da Carta das Nações Unidas e que tenha em conta a diversidade cultural e civilizacional do mundo moderno.
Registamos que os nossos dois países mantêm uma cooperação tradicionalmente estreita na ONU e no seu Conselho de Segurança. Nos anos 2022 e 2023, o Brasil ocupa um assento não-permanente no Conselho de Segurança, exercendo, no corrente mês de outubro, a presidência do mesmo. Dado o peso e a influência do Brasil no cenário internacional e o esforço constante da diplomacia brasileira para buscar respostas coletivas a desafios e ameaças, consideramos o Brasil um candidato lógico a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU reformado.
Valorizamos o atual nível da nossa cooperação nos BRICS. Estamos determinados a reforçá-la durante a presidência russa em 2024. Os meus amigos brasileiros e eu somos unânimes em considerar que o papel dos BRICS como um dos pilares da arquitetura multipolar irá aumentar. Prestamos atenção especial à questão de despoletar o potencial do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) criado para a concretização de projetos infraestruturais nos países membros. A Rússia está disposta a trabalhar muito ativamente em conjunto com a atual presidente do NBD e ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff.
Estamos satisfeitos com o atual nível da nossa cooperação no G20. Apoiamos as prioridades da próxima presidência brasileira do G20 em 2024, como o combate à pobreza, à fome e à desigualdade, a promoção do desenvolvimento sustentável e a reforma das instituições internacionais. Desejamos aos nossos parceiros brasileiros sucesso na sua primeira experiência ao leme deste mecanismo multilateral.
Valorizamos a posição equilibrada do Brasil sobre a crise ucraniana e o desejo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva de contribuir para a procura de soluções para a mesma.
A longa experiência de amizade e a cooperação frutuosa entre a Rússia e o Brasil não deixa dúvidas de que as nossas relações resistiram ao teste do tempo. Olhamos para o seu futuro com otimismo. Estamos determinados a continuar a trabalhar, braço com braço, com os nossos amigos brasileiros para reforçar os nossos laços de todas as formas possíveis em benefício dos povos dos nossos dois países e no interesse da segurança e do desenvolvimento internacionais.