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Entrevista concedida pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, ao Canal do YouTube "Solovyov Live", Moscovo, 27 de dezembro de 2021

2701-27-12-2021

Vladimir Solovyov: Somos agora como ave com três asas. Temos o Ministério dos Negócios Estrangeiros a atuar em três vertentes: a primeira são os contactos com os nossos parceiros norte-americanos, a segunda é a NATO e a terceira são os europeus, independentemente de como eles se chamam (a OSCE é pouco mais do que os europeus). O que é agora o mais importante para nós neste diálogo difícil, que começámos com métodos completamente inabituais à diplomacia tradicional russa? Mas, como se verifica, muito eficazes. Qual é a vertente mais importante?

Serguei Lavrov: Como disse o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, o mais importante é evitar tagarelices, não permitir que as nossas propostas "se atolem" em discussões intermináveis, pelas quais o Ocidente é famoso e nas quais é muito bom, e fazer com que todos estes esforços diplomáticos tenham um resultado e que este resultado seja obtido dentro de um determinado lapso de tempo. Não fazemos nenhum ultimato, mas não queremos conversações intermináveis durante as quais o Ocidente nos faça novamente promessas ambíguas para, depois, enganar-nos. Neste contexto, os EUA são o nosso principal negociador. É com os Estados Unidos que iremos ter a ronda principal de conversações que começará logo que as férias de Ano Novo terminarem.

A NATO, pela voz do seu Secretário-Geral e Presidente do Conselho Rússia-NATO, Jens Stoltenberg, propôs (naturalmente, por iniciativa dos EUA) que se realizasse uma reunião do Conselho Rússia-NATO imediatamente a seguir, ou seja, um dia mais tarde. Esta estrutura organizacional reflete as propostas que apresentámos para a apreciação dos norte-americanos e da NATO. Refiro-me à proposta de tratado Rússia- EUA sobre garantias de segurança e à proposta de acordo Rússia-NATO sobre a limitação de riscos e ameaças no teatro europeu (espero que não se trate de um teatro de operações militares). Contêm coisas muito concretas. Já viu estes documentos. Refletem a nossa visão de uma configuração de forças menos perigosa do lado da NATO e do lado da Federação da Rússia e dos nossos aliados.

Vladimir Solovyov: Quem irá negociar?

Serguei Lavrov: Uma delegação interministerial, com a participação do Ministério dos Negócios Estrangeiros e dos militares. No que diz respeito aos Estados Unidos, não há mal-entendidos. No que diz respeito à NATO, avisámo-los de que, uma vez que congelaram praticamente todos os contactos na área militar desde 2014 e se limitaram apenas a telefonemas ocasionais ao Chefe do Estado-Maior General, a conversa só fará sentido se envolver diretamente os militares. A nossa delegação integrará militares de alto nível. Pedimos-lhes que nos confirmassem se entendíamos bem que eles fariam a mesma coisa. Estamos à espera da sua resposta.

Vladimir Solovyov: De modo geral, a NATO está a comportar-se de forma bastante estranha. Não contactamos com eles de forma alguma. Eles expulsaram os nossos representantes e praticamente romperam os contactos connosco. O que Jen Stoltenberg se permitiu dizer causou uma crise internacional.  Ele disse que, se alguma coisa acontecesse, eles estariam prontos para instalar a infraestrutura nuclear da NATO a leste da Alemanha. O Presidente da Bielorrússia, Aleksandr Lukachenko, reagiu, após o que se tornou alvo de críticas.

Serguei Lavrov: Sim, Jens Stoltenberg é "nórdico", não peca pelas declarações sinuosas, é verdade.

Vladimir Solovyov:   Como é que se pode comunicar com ele?

Serguei Lavrov: Não será com ele que nos comunicaremos. Quero dizer mais uma vez que propusemos um tratado entre a Rússia e a NATO. Isso não implica necessariamente, e não é proibido, que este tratado seja elaborado no Conselho Rússia-NATO. Não será Jens Stoltenberg que travará negociações. Na realidade, ele é chefe da administração do Secretariado da Aliança do Atlântico Norte. As negociações serão travadas pelos membros-chave da Aliança, principalmente os Estados Unidos. Não foi à toa que o Presidente dos EUA, Joseph Biden, reagiu à nossa iniciativa num dos primeiros dias após ter sido apresentada. Ele mencionou o grupo de negociadores: "os EUA mais os quatro principais países ocidentais". Outros membros da NATO e até a Ucrânia não tardaram a reagir. A Ucrânia disse ter a obrigação de participar. Para nós, o que importa não é a forma como contactaremos com a NATO, mas o conteúdo das negociações, a necessidade de conversarmos a nível de militares com responsabilidade e rigor profissional.

Vladimir Solovyov: Externamente, a NATO é uma estrutura muito amorfa. Eles dizem: o que é que quer de nós? Precisamos de um consenso de países.

Serguei Lavrov: Isso não nos interessa. Este é o seu problema interno. Não nos interessamos em saber o que está escrito no seu Tratado de Washington nem no seu Artigo 5º, que obriga a defender todos os membros. Se a NATO fosse uma aliança de defesa, como Jens Stoltenberg não deixa de dizer em "cada esquina", a Aliança não estaria a expandir-se para leste. Atualmente, a NATO é um projeto puramente geopolítico para a ocupação do território que parecia "abandonado" após a extinção do Pacto de Varsóvia e a desagregação da União Soviética. É o que eles estão a fazer. Que "puseram os olhos" na "nossa porta", como disse o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, não nos pode deixar indiferentes.

Vladimir Solovyov: E que dizer do direto, por eles declarado, de cada país de decidir sobre os seus aliados? Não deixam de tentar "provocar-nos" a este respeito.

Serguei Lavrov: Eles estão apenas a tentar apoiar-se a si próprios. Esta é uma tentativa sem escrúpulos, feita de forma suja, de utilizar um documento resultante de uma solução de compromisso, do qual nem um único tijolo pode ser "retirado" para não desmoronar todo o compromisso. É exatamente o que está a ser feito. Até a Carta de Paris para uma Nova Europa, de 1990, afirma que cada Estado tem o direito de escolher como quer garantir a sua segurança, podendo aderir, para o efeito, a alianças. Ao mesmo tempo, este mesmo documento afirma que isto deve ser feito de forma a respeitar o princípio da indivisibilidade da segurança.

Vladimir Solovyov: Então, como disse o Presidente Vladimir Putin falando sobre a problemática do gás, "aqui também estão a mentir"?

Serguei Lavrov: Esta é uma meia verdade, o que é provavelmente pior do que uma mentira pura e simples, porque eles estão a tentar apresentar a sua posição como legalmente irrepreensível. No entanto, o termo "legalmente" não é apropriado aqui. Todos estes documentos: tanto a Carta de Paris para uma Nova Europa como os documentos da Cimeira de Istambul da OSCE, de 1999, são compromissos políticos, tal como a Ata Fundadora Rússia-NATO, de 1997, que também é um documento político. Todos estes compromissos políticos, solenemente proclamados ao mais alto nível, de não reforçar a sua segurança à custa da segurança de outros, de não fazer avançar as suas infraestruturas militares, de não instalar forças de combate substanciais foram coerentemente destruídos, havendo cinco ondas de expansão da NATO no alargamento a leste, ao arrepio de todas as suas promessas. É por isso que agora vamos insistir (não pode haver outra solução) em garantias de segurança juridicamente vinculativas: "confia, mas confira".

O senhor mencionou a OSCE, um tema à parte é sobre como esta Organização se quer posicionar. Em 1975, quando foi assinada a Ata Final de Helsínquia da então Conferência sobre a Segurança e Cooperação na Europa, o Presidente dos EUA, Gerald Ford, disse solene e, eu diria, pomposamente: "A História julgará esta Conferência não pelo que dizemos aqui hoje, mas pelo que faremos amanhã, não pelas promessas que fazemos, mas pelas promessas que cumprimos".

Vladimir Solovyov: Sábias palavras.

Serguei Lavrov: Eu diria "palavras de ouro". É por este testamento de um grandes Presidentes norte-americanos que nos temos vindo a guiar.

Vladimir Solovyov: Ao mesmo tempo, Jens Stoltenberg diz que eles nunca prometeram à Rússia que a NATO não se expandiria para Leste e que o próprio Mikhail Gorbachev lhe havia dito isso. Quando mostrei este vídeo a Mikhail Gorbachev ele disse-me: "Como assim não prometeram? James Baker prometeu-me isso a 9 de fevereiro de 1990. Discutimos este assunto, temos registos das nossas conversas, temos notas estenográficas transcritas". Para esta gente só o que está escrito no papel tem importância. Existe algum registo em que eles nos tenham prometido não alargar a NATO a leste. Os norte-americanos tem-nos repetido esta narrativa todo o tempo.

Serguei Lavrov: Claro que prometeram. Li recentemente algures as memórias de um diplomata britânico que havia participado nas negociações, inclusive aquelas sobre a reunificação da Alemanha e os temas que "se enganchavam" no tema da reunificação alemã no contexto da NATO, armas nucleares, que não deveriam estar a leste da linha em que se encontravam na altura. Ele afirma que eles prometeram sinceramente que a NATO não iria expandir-se, mas, claro que, tinham em vista outra coisa. Estavam a ser levados adiante por uma oportunidade histórica de "construir" uma nova Europa livre de confrontação, etc. Numa conversa com um colega seu, Zbigniew Brzezinski disse sem rodeios: "We tricked them" (Enganámo-los).

Vladimir Solovyov: Na época de Boris Ieltsin também não pedimos nenhuns compromissos registados por escrito, pelo contrário, durante a sua visita à Polónia, concordámos em….

Serguei Lavrov: Isso era tudo o que tínhamos nas nossas relações com o Ocidente na época posterior à extinção da União Soviética em que estávamos a construir novas relações, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse-o mais do que uma vez. Havia um nível de confiança inédito, de vontade de fazer amizade e de ser quase aliado, como Vladimir Putin periodicamente recorda. Pelo que entendemos agora, tudo isso foi um erro. Não podemos acreditar nas palavras dadas por esta gente.

Vladimir Solovyov: O homem que estava, em tempos, à frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia e hoje em dia é um reformado floridense de nome Andrei Kozyrev disse pomposamente que a Rússia deveria aderir à NATO. Porque é que a Rússia não quer juntar-se à família das nações civilizadas?

Serguei Lavrov: Para muitos dos nossos políticos, principalmente os que estão na oposição, o Ocidente é um ideal absoluto, um líder inquestionável que deve ser seguido em tudo. Não veem nenhuns vícios no Ocidente, não veem nenhuns "danos" que o Ocidente deixa em todo o mundo, destruindo países e a sua condição de Estado. Há quem deseje simplesmente sucumbir ao que se passa. Para que irmos tão longe para ver o que se passa na Flórida? Leio, por exemplo, todos os dias resenhas de imprensa divulgadas pelo Gabinete do Presidente e que trazem artigos publicados por todos os meios de comunicação social da Rússia, entre os quais os jornais online Meduza e Republic e o jornal Novaya Gazeta. Estes veículos de informação …

Vladimir Solovyov: Mikhail Bulgakov não avisou: "não leiam...".

Serguei Lavrov: Estes veículos não são comunistas…

Vladimir Solovyov: Em essência, são os mesmos, só que inspirados por uma ideologia oposta.

Serguei Lavrov: Há muito tempo apanhei-me a pensar que, hoje em dia, basta-me ler manchetes para compreender do que se trata, tal como na época soviética. Isso diz respeito a muitos meios de comunicação social atuais. Li, por exemplo, declarações panegíricas no Republic e no Novaya Gazeta. Um dos nossos conhecidos oposicionistas escreveu sobre aquilo que o Ocidente tentava apresentar como crise na fronteira com a Ucrânia na primavera passada. Naquela altura realizávamos exercícios planeados (o alvoroço causado a este respeito atingiu a dimensão mundial). Depois os exercícios terminaram, e as tropas recolheram às suas bases de origem, e ele escreveu: "Estão a ver como Vladimir Putin se assustou. Joseph Biden telefonara-lhe a dizer que retirasse as tropas e as tropas foram imediatamente retiradas". Isto foi escrito por uma pessoa séria que estava integrado ao nosso sistema político e era considerado interessante (a propósito, participou em algumas discussões promovidas pelo seu programa). Mais tarde, o Novaya Gazeta publicou um extenso artigo intitulado "O destino do pária". Para onde leva a política externa da Rússia" e dedicado, naturalmente, à Federação da Rússia que "está com a birra" e não quer aceitar que deva saber o seu "lugar" nas relações internacionais. Perdeu a "guerra fria" e, portanto, deve ser mais modesta e estar onde ficou após ser derrotada. O autor traça um paralelo histórico e cita como exemplo histórico a Alemanha e o Japão após a Segunda Guerra Mundial. Perderam a guerra, aceitaram a situação e receberam uma "excelente democracia". Estas são as palavras de um dos vice-ministros dos Negócios Estrangeiros da época que mencionou. A propósito, teve a seu cargo a questão das ilhas Curilas nas nossas negociações com Tóquio.

Vladimir Solovyov: Não é de surpreender.

Serguei Lavrov: Há uma série de outras "revelações" do género. É uma coisa bastante séria quando o Ocidente é visto como a verdade de última instância.

Vladimir Solovyov: Muita gente teve uma ilusão semelhante. Todavia, no início do seu mandato presidencial, Vladimir Putin disse que "não tínhamos nada contra" outras condições de adesão à NATO, em condições de igualdade, em termos de parceria. Estas condições são-nos oferecidas? É possível a Rússia aderir à NATO?

Serguei Lavrov: Claro que não. Não vejo uma situação como esta, pois todo o processo não gira em torno da NATO ou da União Europeia. Gira em torno do facto de o Ocidente não querer ter rivais comparáveis em termos de influência no cenário internacional. Daí a sua "histeria" por causa da ascensão da China. Este país "ascendeu" porque aceitou as regras do jogo implantadas pelo Ocidente na economia e nas finanças globais. E venceu o Ocidente no "relvado" do mesmo. Agora Washington, Bruxelas exigem que todas as regras da OMC sejam alteradas e a própria Organização seja reformada, dizendo sem rodeios que essa missão compete à América e à Europa. Os outros não precisam de pensar nisso. Dir-lhe-emos o que fazer mais tarde. Não vejo sequer nenhuma ideologia aqui. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse muitas vezes que não se trata tanto de ideologia, mas de uma luta por influência.

Vladimir Solovyov: Napoleão disse que a guerra é, antes de mais nada, a geografia. A política é, antes de mais nada, a geografia.

Serguei Lavrov: Sim, é.

Vladimir Solovyov: Isso quer dizer que somos inimigos? Isto é, para a NATO somos inimigos e o seu objetivo é simplesmente destruir-nos?

Serguei Lavrov: A forma que esta vida, esta geografia pode assumir pode chamar-se também hostilidade ou rivalidade ou concorrência. Se o Ocidente aceitasse optar por uma concorrência leal, penso que esta seria a melhor forma de sair da atual confrontação.

Vladimir Solovyov: Não seria então o Ocidente.

Serguei Lavrov: Não seria então o Ocidente. Agora eles querem alterar as regras da globalização e da Organização Mundial do Comércio, só porque a China lidera seguindo estas regras. Se a China continuar no atual ritmo de crescimento, em 2030 será a primeira potência em todos os indicadores.

Vladimir Solovyov: Uma vez que abordámos o tema da OMC, surge então uma questão da parte deles de como nós pudemos fazer assim, porque não tínhamos vergonha a tomar as medidas em retaliação às suas sanções em vez de chorarmos. Agora dizem que calcularam alguma coisa e decidiram que estamos em dívida para com eles.

Serguei Lavrov: Esta não é obra da OMC.

Vladimir Solovyov: A OMC é abordada com pedidos.

Serguei Lavrov: A Organização Mundial do Comércio deve seguir os seus procedimentos. Neste momento, está, em grande parte, paralisada. Ainda há pouco o órgão de solução de controvérsias estava incapacitado e não funcionava. Quando os chineses inundaram este organismo com queixas completamente justificadas contra os EUA por praticar concorrência desleal, os Estados Unidos utilizaram subterfúgios processuais para bloquear o preenchimento de vagas neste organismo, impedindo assim que houvesse quórum.

Vladimir Solovyov: Agora os europeus dirigem-se a este organismo, dizendo: o que é que vocês, russos, estão a fazer? Causaram-nos um dano colossal, apesar de os termos avisado. Joseph Biden havia-os quebrado como um pau no joelho, confessa que a Europa não queria impor sanções. De repente, descobriu-se que estávamos a dizer a verdade.

Serguei Lavrov: Podemos não discutir de todo esta questão. Este é um passo tão vergonhoso por parte da União Europeia. Tenho pena dos políticos que se atreveram a fazer tais declarações públicas a queixarem-se da Federação da Rússia. É falta de probidade.

Vladimir Solovyov: Todos diziam: o que a Rússia pensa que é? O seu desempenho económico é insignificante. Como é que a Rússia se atreveu a escrever uma carta aos norte-americanos e apresentar-lhes exigências? Todos aqueles que olham para o Ocidente como para o sol sem manchas afirmavam que os norte-americanos não iriam sequer ler a nossa carta. Quem são vocês? Vocês acabarão reduzidos pelos norte-americanos a pó fino. No entanto, os norte-americanos não disseram não. Eles estão a estudá-la com muita atenção. Foram traçadas linhas do diálogo que terá lugar logo após as férias. Quem participará neste diálogo do lado russo e do lado norte-americano? Parece que os norte-americanos também não são unânimes. Vemos que há divergências entre a posição de Jake Sullivan e os comentários feitos por Antony Blinken (pode ser que estas divergências sejam estilísticas, mas esta sensação está presente).      

Serguei Lavrov: Isso será anunciado. Gostaria de dizer que serão os Departamentos de política externa e de defesa. Conhecemos os planos dos norte-americanos. Eles conhecem os nossos planos. Penso que esta informação será divulgada num futuro próximo.

Vladimir Solovyov: Estamos a preparar-nos para estas conversações todos os dias?

Serguei Lavrov: Estamos prontos desde os tempos soviéticos (referência à palavra de ordem dos pioneiros soviéticos: Alerta! - Sempre Alerta! - N. da R.)

Vladimir Solovyov: Embora nem todos nós tenhamos sido pioneiros.

Serguei Lavrov: Falando a sério, não foi ontem que os problemas da segurança do país e outros que o Presidente Vladimir Putin apontou surgiram. Eles não exigem a criação de um instituto de investigação científica para serem analisados. Estes problemas são tratados por um grande grupo de profissionais que é responsável pela elaboração da nossa posição, pela sua promoção e pela avaliação das próximas negociações. Como disse ontem o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, no programa "Moscovo. Kremlin. Putin", iremos avaliar estas negociações e determinar as medidas que devermos tomar com base no relatório que nos será apresentado pelos peritos.

Vladimir Solovyov: Voltemos aos peritos. Os norte-americanos ficaram indignados ao saber que fizemos isso publicamente. Continuam a dizer que querem que as negociações sejam mantidas "sem barulho".  Por outro lado, dizem que também têm reclamações a fazer. Algumas pessoas, que ainda recentemente estiveram no poder, como Michael McFaul (que confundiu para onde foi nomeado: ou Embaixador na Federação da Rússia ou Embaixador na rádio «Eco de Moscovo". Daí a ineficácia das suas atividades), dizem que os EUA devem exigir que a Rússia devolva a Crimeia, saia de Donbass. Por outras palavras, Navalny deve ser colocado à frente do país e o país deve ser dividido. Estamos à espera de uma listagem de exigências que transformará qualquer negociação numa farsa absoluta ou nos damos conta de que isso não vai acontecer?

Serguei Lavrov: O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, explicou porque tornámos pública a nossa iniciativa. O nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros já comentou isso. Conhecemos a capacidade do Ocidente de "fazer atolar" em discussões morosas questões que lhes são inconvenientes. Quando tudo se faz honestamente, a prática diplomática é a seguinte: encontramo-nos, entregamos à outra parte as nossas propostas, eles entregam-nos as suas contrapropostas. Todas as propostas são estudadas, após o que os negociadores se sentam a uma mesa para criar algum terreno comum que se transforma, posteriormente, num documento. Isso quando ambas as partes estiverem dispostas a chegar a um acordo. Neste caso, temos grandes dúvidas de que o principal elemento das nossas propostas, ou seja, a exigência incondicional de que a NATO não se expande para leste, não "se atole" em discussões morosas se seguirmos o caminho tradicional. A nossa posição "não sistémica" e até alguns representantes da oposição "sistémica" afirmam que todas as normas diplomáticas foram violadas. Mencionou a emissora "Eco de Moscovo". Ainda recentemente, um conhecido radialista (que acho que não vive na Federação da Rússia) disse que este foi um erro diplomático, que as pessoas educadas não se comportam desta maneira, etc.

Vamos esperar para ver o que os norte-americanos nos vão oferecer em resposta. Iremos certamente trabalhar com base em instruções claras e inequívocas do Presidente da Rússia.

Vladimir Solovyov: Uma resposta evasiva.

Serguei Lavrov: Porquê?

Vladimir Solovyov: A minha inquietação aumentou. É preocupante quando a diplomacia utiliza termos como "resposta será militar e técnico-militar".

Serguei Lavrov: O Presidente da Rússia disse "técnico-militar".

Vladimir Solovyov: Sim, mas o Vice-Ministro Serguei Riabkov disse que a resposta seria militar e técnico-militar…

Serguei Lavrov: O Presidente disse "técnico-militar". Repito, no seu programa, ele sublinhou que iria tomar a decisão sobre qual seria exatamente a nossa resposta e o que ela seria com base num relatório de peritos militares.

Vladimir Solovyov: O Presidente Vladimir Putin disse que, nalguns casos em que ele ouve o Ministro Lavrov ele tem a impressão de que está a ouvir o Ministro Choigu… Estes são tempos, compreendo. Quando conversarmos com os norte-americanos, iremos tentar adivinhar os seus lances, estamos a preparar-nos para isso? Afinal, esta será uma partida muito séria e muito difícil.

Serguei Lavrov: Primeiro, temos de ver. De qualquer maneira, em última análise, tudo ficará em cima da mesa. Li num dos nossos recursos (Republic ou Novaya Gazeta) algo a dizer que a Rússia "amontou" exigências, pedindo isso e aquilo, dizendo que não venham aqui, não instalem nada aqui. A própria Rússia está pronta para dar passos ao encontro dos seus interlocutores? Qualquer negociação é onde as posições dos parceiros sentados à mesa se encontram no meio. As pessoas que citam estes argumentos esquecem o mais importante: há muito tempo que cedemos a nossa parte do caminho e até um "trecho a mais". Eles chegaram muito perto de nós. Temos de partir do ponto em que estávamos em 1997. Se falarmos do meio do caminho, então devemos deslocar-nos um pouco mais para a esquerda.

Vladimir Solovyov: Muitos homens gostam de dar uma guinada à esquerda (referência à expressão russa "ir à esquerda" que significa cometer adultério – N. da R.), isto é perigoso. Caso contrário, cairemos no comunismo como movimento de esquerda.

Serguei Lavrov: Todos os homens têm o direito de dar uma guinada à esquerda.

Vladimir Solovyov: O que é que tem em vista? Esta a correr o risco de levar "sanções do inferno", como disse no meu programa um dos meus convidados: "Eles não têm contactos no paraíso, por isso só nos podem dar algo do inferno". Kamala Harris "acordou" e disse que iriam impor-nos sanções que ainda ninguém tinha visto… Acabaremos por ser uma Coreia do Norte? O nosso povo não poderá viajar para o estrangeiro. O Presidente Vladimir Putin não poderá "ir às compras" nos Campos Elísios, como a Ministro da Defesa da Alemanha lhe prometeu. Já estou a imaginar Vladimir Putin a passear pelos Campos Elísios rodeado de cossacos. Ela deve estar a levar-nos de volta ao início do século XIX.

A situação é, de qualquer maneira, desagradável. Eles estão a instigar a tensão. Olá, Cortina de Ferro! Está de volta? Olá, União Soviética! Está de volta?

Serguei Lavrov: Por vezes a histeria em torno da Federação da Rússia é uma verdadeira histeria. Nem todos se deixam tomar por histeria. Não vejo nenhuma histeria nos líderes de peso. Tive a oportunidade de mencionar várias vezes o encontro entre Vladimir Putin e Joe Biden em Genebra, onde houve uma discussão absolutamente madura sobre questões concretas, com as partes a compreenderem que tínhamos posições muito diferentes em relação às questões-chave. Todavia, foi uma conversa entre os políticos adultos e experientes que chegaram a delinear as vias de diálogo no final. Este diálogo não tem acontecido há muitos anos.

Na NATO não há mais pessoas "adultas". Com Moscovo e Washington a retomarem os canais de comunicação, a Aliança livrou-se delas. Jens Stoltenberg expulsou oito dos nossos funcionários, reduzindo o nosso efetivo para 10 (contando com o pessoal de apoio). Ninguém mais poderia estar em Bruxelas. É impossível trabalhar nestas circunstâncias.

Há pessoas que compreendem a necessidade de diálogo em todas as circunstâncias. E há quem não o entenda. Mencionou Michael McFaul. Podemos citar muitos outros políticos e não só aqueles que estão reformados, mas também aqueles que continuam a exercer as suas funções nos países bálticos, na Polónia, na Ucrânia (esta última não tem concorrentes). Ficam histéricos com qualquer ação da Rússia sem tentar compreendê-la, colocar-se no nosso lugar e ver os nossos argumentos. Esta histeria faz-me, por vezes, lembrar os nossos adversários caricaturados pelo nosso grupo de humoristas gráficos chamado Kukryniksy. Muitos desejam "assumir" as suas imagens para fazer as suas declarações. Tenho esperança no bom senso dos nossos parceiros ocidentais. Apesar de todas as vicissitudes dos ciclos eleitorais que proporcionam resultados semelhantes aos que vemos na Alemanha (quando um carro passou a ser puxado por uma corça e um ouriço – paráfrase da frase "não se pode atrelar um cavalo e uma corça trêmula numa carroça" do poema "Poltava" de Alexander Pushkin - N. da R.), os políticos maduros serão procurados.

Vladimir Solovyov: Não viraremos uma Coreia do Norte? Refiro-me à perspetiva de ficarmos isolados completamente do Ocidente e proibidos de viajar ao estrangeiro e importar mercadorias estrangeiras.        

Serguei Lavrov: Não posso responder pelos loucos que estão a empurrar os países ocidentais precisamente nesta direção. Por enquanto, não os vejo no poder no Ocidente. Não posso garantir que os loucos que tentam "incitar" os países bálticos, ucranianos, polacos. Estou convencido de que, mesmo que este roteiro fantástico se venha a materializar, saberemos encontrar uma resposta.

Recentemente, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, conversou com o Primeiro-Ministro do Luxemburgo, Xavier Bettel. O Ministro dos Negócios Estrangeiros do Luxemburgo, Jean Asselborn (nomeado para o cargo a quase mesmo tempo que eu) disse, quando conversa comigo e quando faz declarações públicas, que as sanções não têm sentido. Haverá quem ainda não tenha compreendido que a Rússia prova todos os dias a sua capacidade de resolver problemas e não vai mudar o seu modo de vida e as suas crenças só porque o Ocidente fica "zangado" e encerra algumas tecnologias? A aeronave MS-21 foi posta a operar, mas perdemos um ano e meio.

Vladimir Solovyov: A vida política interna do país também não vai diminuir de intensidade? A população está receosa de enfrentar uma caça aos inimigos …

Serguei Lavrov: E seremos então uma fortaleza sitiada? Estou certo de que o governo russo não tem planos semelhantes. Nos seus discursos, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, não se cansa de afirmar estar comprometido com a ideia de ampliação de possibilidades de livre desenvolvimento da sociedade e dos princípios democráticos.

Vladimir Solovyov: Quem é então a "democracia"? Nós ou os países que realizam "fóruns democráticos", convidando os que são da sua conveniência. A Rússia e a China "não são bem-vindas" por serem supostamente países autoritários.

Serguei Lavrov: Já não importa quem é uma "democracia" e quem não é. Pelo menos para mim estes termos perderam todo o sentido. Mencionou uma "cimeira pela democracia" convocada pelo Presidente dos EUA, Joseph Biden. Se olharmos atentamente para a lista de participantes, veremos que estes não foram selecionados de acordo com os critérios da chamada "democracia americana", nem de acordo com o que eles consideram exemplar para as democracias. Os participantes são, na sua maioria, aqueles que, inquestionavelmente, vão na esteira dos EUA. Alguns países, que têm a sua própria opinião e desejam, entretanto, ter boas relações com os EUA, foram convidados por pura formalidade. Todos, porém, querem ter boas relações com o resto do mundo. Tudo depende do preço.

Estão agora a ser anunciados planos de realizar uma "Cimeira para a Democracia" no próximo ano e criar uma organização. Estes planos evidenciam a intenção de criar uma alternativa à ONU. Dizem que os que estão na ONU são todos "atrasados", conservadores, retrógrados, enquanto que eles são pioneiros e levarão adiante o "farol da liberdade".  Será mais uma tentativa de transferir o centro decisório das estruturas universais onde é preciso travar discussões para as suas estruturas onde ninguém questiona. Portanto, a verdade não nascerá ali.

Vladimir Solovyov: Conhece muito bem os Estados Unidos. Quando apresentamos as nossas exigências e dizemos: vamos deixar de nos ver uns aos outros como inimigos, e pedimos diretamente aos norte-americanos que alterem a Lei "Da Luta contra os Adversários da América por Sanções" (CAATSA) adotada pelo Congresso e pelo Senado. Compreendemos que isto não depende sequer do Presidente.

Serguei Lavrov: Não estamos a dizer isto aos norte-americanos.

Vladimir Solovyov: Sugerimos que deixemos de considerar-nos inimigos uns dos outros.

Serguei Lavrov: Estas são coisas diferentes. Nunca pedimos a ninguém que levantasse sanções contra nós. Não nos humilharemos perante ninguém.

Vladimir Solovyov: Não nos considerar inimigos significa alterar a sua legislação. Joseph Biden não consegue chegar a um acordo com o Congresso ou o Senado.

Serguei Lavrov: Nunca pedimos para não nos considerarem inimigos. Dissemos que a Rússia e os EUA têm razões intransponíveis para serem inimigos.

Vladimir Solovyov: Os diplomatas são pessoas educadas. Mas ocorre o seguinte: eles qualificam-nos como inimigos na sua legislação.

Serguei Lavrov: Não vamos correr atrás deles a pedir para revogarem estas leis.

Vladimir Solovyov: Joseph Biden vai assinar, e o Congresso e o Senado, unidos na sua política antirrussa, vão perguntar-lhe porque o sancionou, à semelhança do que aconteceu com o acordo com o Irão.

Serguei Lavrov: Não há garantias. As conversações de Viena devem ser retomadas até ao final do ano (já celebrámos o Natal católico). O Irão, além de colocar condições em que pudesse voltar a cumprir o acordo, exigiu que Washington levantasse as sanções impostas ao país e cumprisse plenamente os seus compromissos, não interferisse com os projetos económicos de Teerão e dos seus parceiros estrangeiros que estão em plena conformidade com este acordo. O Irão também sugeriu registar que os EUA deixassem de se retirar do acordo, o qual eles iriam reconstruir. Os norte-americanos disseram que não o podiam aceitar exatamente por causa do que mencionou. Este é absolutamente o caso. Muitas das sanções contra a Rússia, incluindo a CAATSA e as da Lei de Apoio à Estabilidade e Democracia da Ucrânia, tudo o que foi aprovado pelo Congresso, não está sujeito a alterações por parte do Presidente e da sua administração. Dado o que se passa ali agora, a bacanal antirrussa é um fator unificador. Estou certo de que devemos ter orgulho e pragmatismo, esquecê-lo e concentrar-nos em fazer as nossas próprias asas compostas para os nossos aviões e as restantes peças. Os alimentos já são de produção nacional.

Vladimir Solovyov: Eles não são capazes de cumprir os compromissos assumidos. A verdadeira garantia do não alargamento da NATO a leste é a guarda de fronteira russa ou uma base militar russa. Não é fácil chegar para junto dela. Normalmente, os norte-americanos fazem o seguinte: eles deslocam as suas infraestruturas militares e colocam-nos perante o facto consumado.

Serguei Lavrov: É exatamente isto que é uma "linha vermelha". Aqueles que têm ouvidos, ouvirão. O mesmo pode ser dito sobre os olhos. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, deixou tudo isso bem claro.

Vladimir Solovyov: Dizem que concentrámos tropas na fronteira com a Ucrânia. Não sabem o número exato de efetivos: ou 94 mil, ou 120 mil, nem sabem. Não sabem a distância exata a que se encontram: a 200 ou 400 km. Quando pergunto ao ex-embaixador da Ucrânia, quantas tropas ucranianas estão lá e quão perto estão da nossa fronteira? Ele diz que isso não importa, pois somos criatura do inferno.

Serguei Lavrov: E eles são criatura do paraíso. Isso não me surpreende. É grosseiro demais promover as posições ocupadas atualmente pelo Ocidente e a NATO. Eles estão a ser "incitados" pelos países bálticos, pelos polacos e ucranianos. É óbvio. Estamos no nosso próprio território. É difícil dar aos nossos amigos uma explicação mais clara do que a que foi dada pelo Presidente Vladimir Putin na conferência de imprensa quando ele pediu para imaginarem uma situação em que nas fronteiras dos EUA com o México ou o Canada acontecesse o que estava a acontecer nas fronteiras ocidentais da Federação da Rússia.

A Ucrânia está a ser inundada com armas. Eles gabam-se de ter fornecido àquele país desde 2014 munições e sistemas, incluindo sistemas de ataque, no valor de 2,5 mil milhões de dólares. Entre outubro e novembro passados, noticiou-se que o país recebeu sistemas antitanque Javelin e munições no valor de quase 100 milhões de dólares. Não excluo que haja quem deseje "fomentar" as tendências militaristas e desencadear uma pequena guerra para, depois, deitar culpas à Rússia e impor-lhe novas sanções para prejudicar a nossa capacidade competitiva. Ontem li que um político da Europa havia perguntado: porquê esperar que comece uma guerra? Sugeriu impor preventivamente sanções à Rússia e se a guerra não começar, levantá-las. É evidente que as sanções jamais serão levantadas.

Se estamos a discutir a situação na Europa, deveríamos dizer algumas palavras sobre a UE. Em 2016, a diplomacia da UE era chefiada por Federica Mogherini. Ela começou e conseguiu a aprovação para a sua política para a Rússia baseada em cinco princípios. Um deles pressupunha esforços para desvincular os nossos vizinhos da Federação da Rússia e o "trabalho" com a nossa sociedade civil (é claro o que isto significa). O princípio fundamental dizia que a UE iria normalizar as relações quando a Rússia cumprisse os acordos de Minsk. Qualquer um que os tenha lido compreenderá que esta é uma esquizofrenia política.

Federica Mogherini saiu quando o seu mandato terminou. Em sua substituição foi nomeado Josep Borrell que chefia atualmente a política externa europeia. Conheço-o há muito tempo, desde que ele era Ministro dos Negócios Estrangeiros da Espanha. Ele veio e disse-nos que queria uma nova política, mais construtiva para a Rússia. Após a sua visita a Moscovo, sofreu muita crítica só porque lhes havíamos explicado o que pensávamos sobre Aleksei Navalny e muitas outras coisas: sobre o papel da Alemanha e da Europa em geral em fomentar as mentiras e em não nos fornecer nenhumas provas e em não responder às nossas perguntas mais elementares e às feitas pela oposição alemã no parlamento alemão. Perguntas extremamente claras e tentativas vergonhosas do governo alemão anterior de escapar a respostas honestas. Quando Josep Borrell terminou de elaborar uma nova iniciativa, o Conselho Europeu decidiu manter os "cinco princípios" de Federica Mogherini (a Rússia "deve" cumprir os acordos de Minsk) e proclamou solenemente uma nova atitude: "repelir, conter e envolver". Imaginei a coreografia de tudo isso. Desculpe, é um Kama Sutra político.

Vladimir Solovyov: Tem de explicar sempre tudo de novo. Já deu aulas teóricas a um grande número de secretários de Estado norte-americanos que eram sempre como uma "folha em branco". Agora tem de dar aulas a diplomatas europeus. Acontece, em particular, que ninguém sabe ler. Refiro-me aos acordos de Minsk: toda a Europa grita que a Rússia não é um país garante, mas sim uma parte no conflito. Assistimos à ucrainização da política europeia e norte-americana.

Há algum sentido em falar com os ucranianos sobre alguma coisa? Refiro-me à sua elite política. A azáfama provocada tanto por Vladimir Zelensky como pelo novo Pavel Klimkin (antigo titular da pasta diplomática ucraniana, - N. da R.) à frente do Ministro dos Negócios Estrangeiros é impossível de comentar sequer. Tenho a sensação de que as pessoas vêm e vão e a essência do Pavel Klimkin é sempre a mesma.

Serguei Lavrov: Na verdade, é um caso difícil. Vladimir Zelensky, que concorreu às eleições após fazer imagem de Vassili Goloborodko na telenovela "Servo do Povo", proclamando os mesmos princípios progressistas, prometendo libertar o povo dos oligarcas, respeitar os direitos dos russos e outras minorias nacionais e, mais importante, dar a paz a Donbass, não é muito diferente de Arseniy Yatsenyuk. Este último foi à fronteira enquanto primeiro-ministro onde ajudou a construir uma cerca de arame farpado, a abrir uma trincheira da qual todos já se esqueceram, e chamou, de passagem, aos habitantes das repúblicas autoproclamadas de "não-humanos".

Vladimir Solovyov: "Subhumans". Ele escreveu esta palavra na sua mensagem.

Serguei Lavrov: Numa recente entrevista, Vladimir Zelensky apelidou-os de "exemplares". Um pouco antes, o Presidente da Ucrânia havia feito uma declaração bastante emocional, dizendo: "se alguém na Ucrânia se sente russo, que vá plantar batatas na Rússia". Nenhum político no Ocidente, em nenhuma capital europeia nem nos EUA, comentou esta sua afirmação escandalosa.

Vladimir Solovyov: Apelidou de "exemplares" as pessoas que estão sob as sanções do Conselho de Segurança e Defesa Nacionais da Ucrânia.

Serguei Lavrov: Praticamente todos os habitantes de Donbass estão sob as sanções.

Vladimir Solovyov: Quando lhe perguntaram: "O senhor pensa que eles não são humanos?" Ele disse: "pensa que são humanos? Eles são exemplares".

Serguei Lavrov: Ele é, em princípio, um "grande democrata". A análise que os observadores da vida ucraniana fazem mostra que ele luta também contra os oligarcas, tendo aprovado uma lei sem precedentes que permite tomar decisões políticas para fazer frente aos seus oponentes de direita e de esquerda como no caso de Viktor Medvedchuk.

Temos apelado repetidamente aos nossos colegas ocidentais para comentarem todos estes processos. Fizeram comentários engraçados. Em outubro passado, Bruxelas acolheu uma cimeira Ucrânia-UE em que aprovaram declarações intituladas "A Rússia é o agressor" e "A Rússia é uma parte do conflito". A Ucrânia foi "elogiada" por estar a "cumprir" os acordos de Minsk. Além disso, a cimeira exigiu que a Rússia tomasse medidas para garantir o funcionamento de empresas económicas em Donbass, o fornecimento de energia elétrica e abastecimento de água nestes territórios não controlados pelo regime de Kiev para que, e passo a citar: "os habitantes destes territórios gozem dos mesmos direitos dos habitantes do resto da Ucrânia". Então, se a Rússia fizer tudo, a UE estará na vanguarda da restauração económica destes territórios, após a sua reunificação com a sua "pátria".  Isto está escrito preto no branco no papel.

Outro aspeto a destacar. Após a reunião entre Angela Merkel, Emmanuel Macron e Vladimir Zelensky, o porta-voz do governo alemão, Steffen Seibert, e não o assessor de imprensa ucraniano, disse que as partes foram unânimes em considerar necessário cumprir os acordos de Minsk e que a sua unanimidade continuaria a determinar a sua posição no formato Normandia e sobre a crise ucraniana. Por outras palavras, a Alemanha assinou esta interpretação, ou melhor, a perversão dos acordos de Minsk por parte de Kiev. Isto também é um exemplo revelador.

Perguntamos aos franceses depois o que eles pensavam sobre a necessidade de dialogar com Donetsk e Lugansk, como está escrito nos acordos de Minsk? Eles disseram-nos que não viram nada nos acordos de Minsk que implicasse a consulta com estes "separatistas". Foi exatamente o que nos disseram. Depois, quando chamámos a sua atenção para o facto de três canais de televisão terem sido encerrados com uma só penada de Vladimir Zelensky, em violação de todos os compromissos da Ucrânia no âmbito da OSCE, do Conselho da Europa, da UNESCO. Os franceses disseram-nos que esta decisão foi tomada com base na legislação ucraniana.

Vladimir Solovyov: O que é que devemos então conversar com eles?

Serguei Lavrov: Esta é a situação que temos. Eles estão agora a tentar fazer os possíveis para convocar uma reunião no formato Normandia, promovendo uma espécie de programa de "dez passos" apresentado no início de dezembro corrente ao formato Normandia, aos norte-americanos e ao Grupo de Contacto. É ofensa ao bom senso.  Estão a exigir um cessar-fogo urgente.

Vladimir Solovyov: A quem?

Serguei Lavrov: À Rússia e a Donbass.

Vladimir Solovyov: Que exijam a si próprios.

Serguei Lavrov: Em julho de 2020, houve um acordo (o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, comentou esta questão), segundo o qual as partes não deveriam responder imediatamente a um tiro, deveriam acalmar-se um pouco, "pôr o seu cérebro a funcionar" e informar os seus chefes. No dia seguinte, após isto ter sido acordado, as repúblicas emitiram os respetivos despachos. O regime de Kiev não emitiu nada, limitando-se a uma declaração que distorcia o sentido do que tinha sido acordado (não entrarei em detalhes agora). Foi exortado várias vezes a aprovar uma lei para fixar o que havia sido acordado. Finalmente, isso foi feito. Todavia, o comandante-chefe das forças armadas ucranianas, Valeri Zalujni, disse publicamente que isso não correspondia à verdade que os seus comandantes (entre os quais havia muitos bandidos e elementos dos chamados "batalhões voluntários". Podemos imaginar que tipo de pessoas são) decidem por si próprios quando e contra quem disparar.

Vladimir Solovyov: Acrescentamos a isso empresas militares privadas...

Serguei Lavrov: Finalmente, há alguns dias emitiram algum tipo de documento cheio de malabarismos verbais, segundo o qual pretendem observar este acordo. Leio regularmente reportagens dos nossos jornalistas feitas na linha de contacto do lado de Donbass: referem muitas instalações da infraestrutura civil destruídas, vítimas entre os civis, a vida dos habitantes locais sob a ameaça constante de bombardeamentos. Quando os meus interlocutores me dizem que é preciso "domar" os "separatistas", fazer com que não provoquem a Ucrânia e não bombardeiem o seu território, eu pergunto-lhes: onde estão reportagens jornalísticas feitas do lado esquerdo da linha de contacto? Para que todos possamos ver como o exército ucraniano e os participantes nesta operação "especial" estão a sofrer. Não vemos nada disso. O lado ocidental da linha de contacto só é mostrado quando Vladimir Zelensky, de capacete e colete à prova de bala, interpreta outro papel. Isto é tudo. É uma vergonha.

Quando a crise dos migrantes estava na sua fase "quente" (é quanto à questão da liberdade de expressão e de acesso à informação), os polacos não deixavam os jornalistas entrar na sua fronteira, embora os jornalistas estivessem ansiosos por lá chegar. Do mesmo modo, os ucranianos não querem os jornalistas na parte ocidental da linha de contacto porque estes podem desfazer o mito de que os milicianos de Donbass teriam destruído tudo no seu território e teriam matado os civis.

Vladimir Solovyov: Como podemos falar dos acordos de Minsk e exigir que sejam observados, se a interpretação russa é completamente diferente da dada pelas outras partes?

Serguei Lavrov: Interpretamo-los na forma como estão.

Vladimir Solovyov: Sim, mas nós somos os únicos a interpretá-los na forma como estão. Os norte-americanos, os franceses e os alemães compartilham a posição ucraniana.

Serguei Lavrov: A posição dos norte-americanos é diferente. Durante a reunião com o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, em Genebra, o Presidente norte-americano, Joseph Biden, disse que os EUA queriam ajudar a implementar os acordos de Minsk e que não queriam interferir nos formatos existentes (como na época de Donald Trump. Naquela altura, Vladislav Surkov e Kurt Volker mantinham um diálogo paralelo), estando, contudo, dispostos a ajudar. Joseph Biden disse compreender que a implementação dos acordos de Minsk pressupunha a concessão de alguma autonomia.

Vladimir Solovyov: Mas Vladimir Zelensky não o compreendeu. É por isso que está agora sob pressão da imprensa norte-americana? Está a ser duramente criticado, o que não era o caso antes.

Serguei Lavrov: Sim, Vladimir Zelensky tem feito muitas coisas "loucas". Eles têm medo de "coisas loucas", receando que alguma tolice (a imprensa ocidental escreve cada vez mais sobre isso) possa causar um conflito de que ninguém precisa.

Vladimir Solovyov: Os britânicos disseram francamente: se algo semelhante começar na Ucrânia, sairão correndo.

Serguei Lavrov: Evacuação. Para que mais servem as forças armadas?

Vladimir Solovyov: Partirão rapidamente.

Serguei Lavrov: Sobre os acordos de Minsk. É o cúmulo do cinismo quando a nossa posição é apresentada como tentativa da Rússia de interpretar os acordos de Minsk à sua própria maneira e exigir que o regime de Kiev os observe na forma como a Rússia os interpreta.

Vladimir Solovyov: E quem nos ouve?

Serguei Lavrov: Todos nos ouvem. Eles apenas estão a fingir não nos ouvir.

Vladimir Solovyov: Se eles estão a fingir, qual é o nosso próximo passo? De facto, não queremos encontrar-nos com eles, dizemos que devem cumprir o que assumiram.

Serguei Lavrov: Deus está na verdade.

Vladimir Solovyov: Sim, ouço muitas vezes esta frase, embora na maioria dos casos dos militares: "Não é na força que Deus está, mas na verdade".

Serguei Lavrov: Porque Aleksandr Nevsky (Príncipe de Novgorod e Grão-Príncipe de Kiev durante alguns dos momentos mais difíceis da história da Rússia - N. da R.) era não só diplomata, como também comandante militar.

Vladimir Solovyov: Isto é, vamos dizer regularmente esta verdade?

Serguei Lavrov: Temos de insistir firmemente na inviolabilidade dos acordos de Minsk.

Vladimir Solovyov: Podemos impor algumas sanções contra outras partes? Não aplicamos sequer um pacote normal de sanções contra a Ucrânia, nem mesmo quando o declaramos.

Serguei Lavrov: Esta é um assunto à parte. A Rússia não é a favor de sanções. Afinal, o que está a acontecer agora é a usurpação das funções da diplomacia, da cultura de diálogo, de compromisso. Assim que algo for contra a visão do Ocidente, aqui estão as sanções. A União Europeia já está a "macaquear" os métodos norte-americanos.

Vladimir Solovyov: Começámos também a procurar novas medidas. Este ano, a nossa diplomacia age de forma agressiva, ofensiva, como há muito desejávamos. Abandoou o seu estilo educado, irónico e começou a expressar a nossa posição de forma dura, muito dura. Publicou a troca de correspondência com os seus parceiros ocidentais, dizendo "rapazes, parem de mentir, é como está escrito".

Serguei Lavrov: Esta não é uma maneira agressiva.

Vladimir Solovyov: Quero dizer em relação aos conceitos diplomáticos tradicionais. A nossa diplomacia deixou de ser tímida em chamar branco ao que é branco e preto ao que é preto.

Serguei Lavrov: Antes também não éramos tímidos. Costumávamos dizer coisas com suficiente firmeza que, na nossa opinião, deveriam ser fundamentais na mesa de negociações entre a Rússia e o Ocidente.

Vladimir Solovyov: Os acordos de Minsk podem ruir? Até quando vamos tolerar?

Serguei Lavrov: A Rússia não está interessada nisto. Não os destruiremos, mas se alguém os destruir, a culpa será só dele.

Vladimir Solovyov: Isso quer dizer que a Rússia vai participar nalguma versão do formato Normandia?

Serguei Lavrov: Desde que eles "deixem de se fazer de parvos". É o que os nossos parceiros estão a fazer agora, fingindo estarem a trabalhar com o regime de Kiev para obriga-lo a cumprir os acordos de há dois anos. Todos concordam em reunir-se a fim de implementar as resoluções da Cimeira de Paris. Dizemos que, primeiro, estas resoluções devem ser cumpridas, e só depois vamos reunir-nos, pois, caso contrário, as resoluções da Cimeira de Paris e as reuniões de líderes em geral perderão o seu valor.

Vladimir Solovyov: Então a posição russa agora é nenhum passo para trás?

Serguei Lavrov: Nenhum passo para trás em relação aos acordos de Minsk. Já demos alguns passos para trás. Em primeiro lugar, os próprios acordos de Minsk já são uma concessão. Tivemos muitas dificuldades em convencer Donetsk e Lugansk a assiná-los, o que significa a renúncia a uma eventual independência como resultado da implementação ao pé da letra dos acordos de Minsk. Em segundo lugar, a "fórmula Steinmeier" foi outra grande concessão que aceitámos fazer. Houve uma discussão, e Petr Poroshenko não quis assinar o acordo sobre um estatuto especial antes que ali se realizem eleições, dizendo cinicamente que se eles elegessem uma pessoa não desejada, não valeria a pena conceder um estatuto especial àquela região. Isso também mostra como este homem encara a sua assinatura colocada nos acordos de Minsk. A fórmula implicava que o estatuto seria acordado antecipadamente, entraria em vigor no dia das eleições e seria provisório, devendo tornar-se permanente a partir do dia da publicação do relatório final dos observadores em que as eleições fossem reconhecidas justas e genuínas. É uma prática normal.

Vladimir Solovyov: Terá alguma reunião com a Ministra dos Negócios Estrangeiros alemão?

Serguei Lavrov: Tive uma curta conversa telefónica com ela.

Vladimir Solovyov: Ela virá aqui?

Serguei Lavrov: Sim, nós já a convidámos. Ela disse que viria.

Vladimir Solovyov: A conversa foi proveitosa? Ela havia feito declarações acerbas.

Serguei Lavrov: Somos pessoas educadas, apesar das características que tem dado à diplomacia russa ultimamente.

Vladimir Solovyov: Somos pessoas educadas, mas insistentes.

Serguei Lavrov: Quando Vladimir Putin me incumbiu de representar o Presidente da Rússia na cimeira do G20, tive a oportunidade de falar com o Olaf Scholz que estava a acompanhar Angela Merkel. Ela fez um gesto extraordinário de convidá-lo a encontrar-se com os membros do G20.

Vladimir Solovyov: Mas ele tem uma posição diferente.

Serguei Lavrov: Esta é uma característica do sistema de gestão alemão. Li o seu programa, em particular o capítulo referente às relações com a Rússia. O documento salienta que as relações com a Rússia são profundas e multifacetadas e destaca o seu desejo de manter uma cooperação construtiva com o nosso país. No entanto, a seguir, documento trata de temas como "anexação", Crimeia, sociedade civil, direitos humanos, tudo. Um pograma inevitavelmente eclético. Veremos. Tudo dependerá de passos concretos.

Vladimir Solovyov: Parece que andamos a instigar. Por vezes até quero dizer: "Rapazes, o Ano Novo está a chegar. Vamos celebrar o Ano Novo".

Serguei Lavrov: O que é que estamos a instigar?

Vladimir Solovyov: Não, refiro-me a tudo o que se está a passar à nossa volta.

Serguei Lavrov: Eles não festejam a chegada do Ano Novo. Bebem champanhe no dia 25 de dezembro e passeiam apenas pelos marginais na noite da passagem do ano. Na Rússia as festas começam no dia 25 de dezembro e vão até ao dia 13 de janeiro.

Vladimir Solovyov: Temos festanças. O ano que está a entrar será

pacífico? Será um ano de diplomacia ou pode vir a ser um ano de guerra?

Serguei Lavrov: Espero que seja um ano de diplomacia (se esta fosse a nossa escolha), de uma diplomacia voltada para alcançar resultados e reunir os países-chave dos quais dependem as questões mais importantes e que estão unidos pelo objetivo de chegar a um acordo e não "fazer rodeios".

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